Alexander Calder - a arte e os brinquedos

Um dos temas deste blog é, como o leitor já deve ter entendido, a importância da educação para o desenvolvimento das capacidades artísticas do sujeito, com uma maior ênfase no campo da Arquitectura. O que está em causa é, de facto, a utilidade de uma educação disciplinada e apoiada em actividades lúdicas e brinquedos que, de alguma forma, consigam despertar nas crianças (apesar de fazer mais falta nos adultos...) um conjunto de sensibilidades e capacidades próprias da prática do projecto de Arquitectura. A percepção e interpretação do espaço tridimensional, o desenho e a representação são, entre outras, algumas das competências que distinguem uma predisposição para a Arquitectura.
Não é o meu papel, aqui e agora, defender a ligação directa e causal ou indirecta e casual entre a brincadeira e a apetência e competência profissional. Se por um lado já falei de exemplos de sucesso, muitos são os exemplos de uma formação em Arquitectura que tem resultado numa profissão profundamente diferente. Em Itália, por exemplo, onde o número de arquitectos per capita é o mais elevado do mundo (1 arquitecto por cada 500 habitantes), o que não falta são pessoas com formação específica em Arquitectura, pelos casos da vida, exercem outra profissão.
Nesta sentido, a personagem acerca da qual irei falar a seguir é, sem dúvida, um dos exemplos mais paradigmáticos neste âmbito. Nesta história conceitos como educação, formação, brincadeira ou como arte e ciência, encontram-se misturados em torno de uma vida dedicada à produção artística onde arte e brincadeira se fundiram até se tornarem uma única coisa. A sua herança não se limitou ao campo das artes: nos quartos e nos berços de milhões de crianças de todo o mundo encontram-se pendurados num contínuo, lento e infinito movimento objectos que possuem uma forma e um funcionamento que pode ser considerado herdeiro das suas obras e que costumamos chamar mobile. Trata-se do artista norte-americano Alexander Calder.

Alexander Calder nasceu no dia 22 de Julho de 1898 em Lawnton, Pensilvânia, segundo filho da pintora Nanette Lederer Calder, e do escultor Alexander Stirling Calder.
Nos primeiros anos de vida encontramos os principias ingredientes do seu futuro sucesso enquanto artista plástico. Durante duas décadas de vida a família mudou de cidade praticamente todos os anos para seguir a carreira do pai que aceitava encargos públicos em diferentes estados dos EUA. Apesar disso os pais de Alexandre demonstraram uma especial atenção para a educação do filho ao reservar, em praticamente todas as casas em que viveram, um quarto à sua disposição como atelier. Quando a casa não tinha condições, a solução passava por montar uma tenda com um pavimento em madeira, no exterior da habitação.

Em 1906, o pequeno Alexandre recebeu as suas primeiras ferramentas para trabalhar madeira e ferro com as quais criou jóias para as bonecas da irmã com algumas contas e uma ponta de fio de cobre que alguns electricistas tinham deixado na rua. O próprio Calder mais tarde chegou a comentar as condições nas quais costumava construir os próprios brinquedos enquanto criança: “In California, I had a friend with whom I made armor and weapons from sheet metal and boxwood. We made shields, breastplates, helmets, swords, lances. I even covered an old pair of my mother's gloves in tin scales. He was Sir Lancelot, and me, I was Sir Tristan. We planned to stage (friendly) fights, but he was more agile than I, and once he dealt me a blow to the head with the flat side of his (wooden) sword and I quit the game for good. Another time I had some horses made of cowhide stuffed with sawdust—25 centimeters high—and a mechanical wire track whose carriages were 7 centimeters tall, and I became enraged when my neighbors all came over to play with them. On a different occasion, we had some branding irons that we had heated up over a candle. The metal got too hot and we burned the horses and the sawdust came out.” Se por um lado se compreende como Calder se tornou um grande artista plástico, por outro lado não se compreende como tenha sobrevivido a uma infância circundada por latas, serrotes, fios eléctricos e brinquedos em chamas.

Dois anos mais tarde, no Natal de 1909, com somente 11 anos de idade, Calder doou aos seus pais duas pequenas esculturas - um cão e um pato - feitos de chapa de latão. O pato é uma peça de particular interesse porque demonstra uma enorme capacidade de abstracção formal e em manusear os vários materiais. Além disso é uma das primeiras experiências cinéticas de Calder porque tendo o fundo curvo fica a balouçar quando se carrega na calda. O ano seguinte construiu, por ocasião do aniversário do pai, um jogo de estratégia que consistia num tabuleiro dividido em quadrados onde se movimentavam cinco animais em madeira: um tigre, um leão e três ursos.

Com uma infância passada a viajar pelos Estados Unidos, em 1915 Calder já possuía estabilidade suficiente para se inscrever no Stevens Institute of Technology em Hoboken, New Jersey, onde estudou, entre outras coisas, Química, Desenho Mecânico, Agronomia e Artes Aplicadas. Em 1919, após algumas breves passagens em vários campos de treino militar, Calder formou-se em engenharia mecânica no Stevens Institute.  Nos quatro anos sucessivos aceitará vários trabalhos: algum tempo como engenheiro e desenhador na indústria automobilística, nove meses como fiscal numa serração, engenheiro hidráulico a colorir projectos de instalações e engenheiro de obra. 

Em 1922, Calder reaproxima-se das artes quando, na primavera se inscreve, em horário pós laboral, nas aulas de desenho de uma escola pública de Nova Iorque.

Após mais alguns serviços profissionais, ainda como engenheiro, procura emprego no Canadá. Será justamente em Vancouver, durante uma conversa com o engenheiro que o ia supostamente empregar, que Calder tomará a decisão de se tornar num artista e de deixar a engenheira: “I went to Vancouver and called on him, and we had quite a talk about what career I should follow. He advised me to do what I really wanted to do, he himself often wished he had been an architect. So, I decided to become a painter.” Assim, no ano seguinte, em 1923, Calder inscreveu-se nas aulas de composição e pintura de John Sloan e de retrato com George Luks, na escola The Art Students League em Nova Iorque. Em 1925 Calder já tinha começado a sua produção artística quando um jornal local, o National Police Gazette, encomendou-lhe as ilustrações para alguns artigos sobre o Ringling Brothers and Barnum and Bailey Circus (que ainda hoje existe). Nesta experiência Calder ganhará um gosto e uma paixão para o circo que marcará o seu futuro artístico. 

Em 1926 Calder decidiu visitar a Europa mas, infelizmente, não tinha dinheiro para pagar a passagem. Esta condição de pobreza, demonstrada nas frequentes cartas aos pais a pedir dinheiro para pagar os vários encargos, o acompanhará ao longo da primeira fase da vida e o obrigará, entre outras coisa, a ser extremamente inventivo na forma de produzir objectos e de obter lucro. Mesmo assim consegue, com a ajuda do seu professor Clinton Balmer, ser admitido como tripulante do barco inglês Galileo que fazia a rota de Nova Iorque para a cidade inglesa de Hull. Em troca da sua mão-de-obra como pintor do casco do navio terá a sua primeira passagem para a Europa paga.

Instalado em Paris em 1926 (em finais de Agosto já tinha alugado uma casa e um atelier), Calder consegue sobreviver desenhando ilustrações para o jornal Le Boulevardier. Apesar deste empenho não deixa de projectar e construir brinquedos, além de figuras humanas e animais com vários materiais. A qualidade dos seus brinquedos e a sua falta de dinheiro eram tais que, no mesmo ano, quando um comerciante de brinquedo sérvio o encoraja a pensar numa possível produção em larga escala dos seus brinquedos, Calder resolve produzir uma grande série de figuras em arame e madeira. Como o mesmo Calder comentou mais tarde, a sua capacidade de construir brinquedos era claramente fruto da sua anterior formação: “As I had always worked with tools, and indeed, graduated from an engineering college, I found no particular difficulty with this medium.“ O comerciante sérvio nunca mais apareceu mas Calder não quis parar e a serie de brinquedos acabou por ser a primeira versão do Cirque Calder, um espectáculo complexo de bonecos em movimento que foi sujeito a alterações e actualizações ao longo dos seguintes cinco anos. O conjunto reunia pequenos artistas, animais e objectos que tinha observado no Ringling Brothers Circus. Com fios, peles, roupas e outros materiais que eram encontrados, o Circo Calder era projectado, construído e dirigido pessoalmente por Calder. Além disso todo o conjunto era pensado para poder ser arrumado em 5 malas permitindo a Calder actuar em qualquer lugar. O espectáculo demorava cerca de duas horas e existiu ao longo de 40 anos tendo sido apresentado centenas de vezes nos contextos e diante das assistências mais diferentes.

Nesta altura da vida de Calder a paixão pelos brinquedos era muito forte e a sua produção consequente; além disso, o circo era o seu principal sustento. Os seus animais foram exibidos numa galeria de Paris e a 4 de Agosto de 1927 a edição parisiense do jornal New York Herald publicou um artigo onde o próprio Calder refere: “I began by futuristic painting in a small studio in the Greenwich village section of New York. It was a lot different to engineering but I took to my newfound art immediately. But it seemed that during all of this time I could never forget my training at Stevens, for I started experimenting with toys in a mechanical way. I could not experiment with mechanism as it was too expensive and too bulky so I built miniature instruments. From that the toy idea suggested itself to me so I figured I might as well turn my efforts to something that would bring remuneration. From then on I have constructed several thousand workable toys.” No Outono do mesmo ano, ao regressar para os Estados Unidos, Calder contacta a Gould Manufacturing Company para propor a produção de um conjunto de animais chamados "Action Toys". Uma vez mais, nada feito.
A partir dos anos ’30 Calder começa a ter os primeiros reconhecimentos artísticos da sua obra e, apesar de ainda não ser economicamente autónomo (em 1930 escreve aos pais a pedir dinheiro para pagar a renda e as suas frequentes viagens aos Estados Unidos, e continuas mudanças de residência e de escritório, parecem ser mais para fugir aos credores que outra coisa), já é muito conhecido nos círculos artísticos mais exclusivos de Paris. Conhece e frequenta com regularidade os ateliers de artistas como Joan Miró, Fernand Léger, James Johnson Sweeney, Piet Mondrian e Marcel Duchamp. Com o treino ganho na criação de material para o circo em fio de ferro, Calder começou a fazer retratos em arames de figuras públicas, encontrando mais uma fonte de rendimento. Em 1928 teve a primeira exposição sozinho na Weyhe Gallery de New York, seguiram-se outras como as de Paris ou de Berlim. Numa das viagens entre Paris e Nova York de navio conheceu Louisa James, sobrinha do escritor Henry James; casaram-se em 1931.

Ainda 1931 Calder criou a obra que irá, sucessivamente, caracterizar a sua produção mais conhecida: uma escultura cinética que inaugurava uma forma de arte inovadora. A primeira experiência foi uma peça accionada por um sistema de manivelas e motores que Marcel Duchamp apelidou “mobile” (em francês “mobile” significa quer movimento como motivação). Mais tarde Calder abandonou o uso de motores e de mecanismos de movimento quando percebeu que as suas peças eram muio mais interessantes quando movidas pelas correntes de ar. Jean-Paul Sartre chegará a escrever, num texto escrito em ocasião de uma exposição de Calder, que a sua obra questionava a definição de escultor porque não trabalhava com a massa parada mas com elementos bidimensionais que se mexiam no espaço. Desta forma, dizia Sartre, “A "mobile," (…) is a little private celebration, an object defined by its movement and having no other existence”.

O resto da história seria mais uma tediosa descrição do sucesso artístico e profissional de Calder: exposições, prémios e grandes obras pautaram a vida deste artista até 1976, ano em que, com 78 anos de idade, morreu. Após mais de três décadas de produção artística, as esculturas de Calder habitam muitas cidades do mundo e os seus mobiles agitam-se, sem parar, por baixo das grandes coberturas de museus ou outros edifícios públicos.
Não são certamente os poucos brinquedos desenhados por ele que ainda se encontram em produção que representam a sua principal herança. O que Calder conseguiu foi reconhecer um território e neste traçar alguns caminhos. Um território onde arte, engenharia e brinquedos se cruzam e se enriquecem reciprocamente e ganham novos significados.


Por enquanto não me perguntem porquê (prometo que um dia irei estudar o assunto) mas acredito que Calder conseguiu encontrar uma forma de criar objectos artísticos, lúdicos e de consumo emocional que não possuem limites de idade e que, mesmo por causa disso, não necessitam de uma prévia formação cultural. Se é verdade, e nisso acredito piamente, que a função da obra de arte é aumentar o conhecimento do sujeito sobre o universo que o rodeia e que a mesma definição pode ser aplicada ao brinquedo, então vejo em toda a obra de Calder a fantástica capacidade de encontrar um espaço de produção material e intelectual que consegue originar objectos com verdadeiras qualidades intelectuais, materiais e, sobretudo, lúdicas e, por isso, emocionais.

Em 1930, quando a mulher Louisa tomou a decisão de casar com Alexandre (apelidado de Sandy), resolve escrever à mãe para lhe descrever o seu noivo: “To me Sandy is a real person which seems to be a rare thing. He appreciates and enjoys the things in life that most people haven't the sense to notice. He has ideals, ambition, and plenty of common sense, with great ability. He has tremendous originality, imagination, and humor which appeal to me very much and which make life colorful and worthwhile. He enjoys working and works hard, and thus ends the summary of his character.”

Fontes: Fundação Calder, Berkshire Museum, Whitney Museum

3 comments:

  1. esse artista é maravilhoso!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
    :)

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