Bruno Taut - da utopia aos brinquedos

Um dos aspectos que mais me interessa em alguns brinquedos desenhados por arquitectos é o de conseguir serem representativos não só do pensamento do autor como de todo o contexto arquitectónico e intelectual, no qual foram pensados e produzidos. É o caso deste brinquedo, umas construções desenhadas pelo arquitecto alemão Bruno Taut (1880-1938) em 1919, em que nenhum aspecto ficou deixado ao acaso e tudo remete para uma narrativa histórica e disciplinarmente mais complexa e articulada. Vamos ver:

Para os arquitectos, uma personagem incontornável mas praticamente desconhecido entre os não arquitectos, Bruno Taut é um dos mais importantes arquitectos expressionistas do século XX. Irmão de Max Taut, também arquitecto, Bruno teve uma carreira que possui duas facetas distintas que se cruzam frequentemente ao longo da vida profissional: uma de carácter mais intelectual e utópico e outra mais ligada ao funcionalismo e aos projectos de habitação, sobretudo no contexto do pós-guerra alemão. A criação deste brinquedo pertence, claramente, à fase mais intelectual e idealista podendo ser considerado como uma soma das várias linhas de pensamento que, naquela altura, Taut perseguia e, mais especificamente, do seu lado mais expressionista.

O princípio do século XX é extremamente rico na produção de construções. São centenas tanto de madeira como de pedra, mas este brinquedo possui uma singularidade que faz que em nada se pareça com as suas homólogas. Dandanah, o Palácio das fadas, é constituído por 62 peças em vidro colorido que se recolhem numa caixa octogonal em madeira. Esferas, cubos, paralelepípedos e prismas com arestas vivas e superfícies polidas podem ser utilizados para fazer construções ricas de transparências e de cores, caracterizadas por uma elegância e uma ligeireza que contradiz o peso da geometria das formas. Em suma, um brinquedo que nenhum pai minimamente prudente entregaria a um filho... De qualquer forma demonstra que Taut estava atento às teorias didácticas subjacentes às construções que apareceram em toda a parte na Europa, nos mais diferentes materiais, no seguimento das teorias pedagógicas de Fröbel ou de Pestalozzi, entre outros. Como já tive oportunidade de descrever, o princípio do século XX foi um período rico em grande alterações educacionais e escolares passando de uma visão estritamente doutrinal para uma maior liberdade do sujeito em construir o seu conhecimento. Um brinquedo de construções é um sistema aberto que possibilita um enorme número de variações possíveis partindo dos mesmo elementos base: a criança aprende fazendo (e brincando) não necessitando de uma doutrina prévia.

Antes de falar da utilização de vidro, vamos tentar perceber o porquê das cores.
A utilização da cor era algo de muito importante para Bruno Taut. Já nas primeiras obras, como foram as casas para a cidade-jardim em Falkenberg, de 1912/33, ou as do Siedlung em Magdeburgo de 1912/15, o arquitecto adoptou cores vivas como elemento linguístico característico da sua arquitectura. Em resposta a uma construção popular cinzenta, Taut mandava pintar os edifícios com cores contrastantes levantando, na altura, um grande debate crítico em torno da utilização da cor. O cinzento era, na altura, a cor dominante nos bairros populares e a burguesia costumava troçar destes edifícios apelidando-os de “pocilgas cinzentas”. Os moradores tentaram reagir a esta discriminação e quando pediram a Taut alguns conselhos para pintar as próprias casas este, após uma primeira fase pouco convicta, aconselhou-os a adoptar tintas com cores vivas. Foi um sucesso de tal ordem que em breve, sem nenhum tipo de publicidade, os bairros eram metas de visitas e estiveram envolvidos por uma polémica sobre a cor na arquitectura. As cores das casas transformaram-se em símbolos da luta de classe e as críticas da burguesia só serviam aos sócios das cooperativas como reconhecimentos da sua luta. A cor será, a partir desta altura, um dos elementos mais característico da obra de Bruno Taut e, mais tarde, de muita construção social do século XX pela Europa fora chegando a contagiar, em Portugal, muita obra, sobretudo no período pós 25 de Abril (veja-se, por exemplo, o bairro da Bouça no Porto do arquitecto Álvaro Siza em que o autor declarou explicitamente que a arquitectura de Taut foi fonte de inspiração).

Uma vez percebida a importância da cor, vamos avançar para explicar o porquê do brinquedo ser feito de vidro e, já agora, de vidro colorido.
Em 1914, o Deutscher Werkbund, a Federação Alemã do Trabalho (que mais tarde estará na origem da famosa escola Bauhaus), cuja função era a de juntar os esforços intelectuais e produtivos das artes com a da produção industrial, organizou uma exposição em Colónia. Para esta exposição Bruno Taut projectou o pavilhão da Indústria do vidro alemã, um edifício de planta circular cuja cobertura era uma grande cúpula prismática feita com paneis de vidro de cores diferentes (provavelmente as mesmas cores utilizadas no brinquedo Dandanah).
No interior encontrava-se uma cascata de água e as paredes eram revestidas em mosaico com partes metálicas e brilhantes. A luz que atravessava a cúpula criava, no seu interior, reflexos e brilhos de luz colorida criando um ambiente que tinha certamente algo de mágico. O edifício durou poucos meses e foi destruído em Agosto de 1914, quando rebentou a Primeira Guerra Mundial. O único testemunho que existe são umas fotografias a preto e branco que não conseguem transmitir a grandiosidade e o interesse desta obra. Segundo as crónicas da altura o pavilhão era considerado ridículo como exemplo da nova arquitectura. Por fora, o embasamento de betão era grosseiro e desinteressante e nada deixava intuir o seu interior; mas quando as pessoas entravam ficavam fascinadas de tal forma que este edifício se tornou uma das principais atracções da feira. No panfleto do pavilhão, Taut mandou escrever: “o edifício em vidro não tem nenhuma outra função que não seja a de ser bonito”. No seu interior uma frase do poeta e escritor alemão Paul Scheerbart: “o vidro nos leva para uma nova época, a cultura do tijolo só nos faz compaixão”.

Bruno Taut e Paul Scheerbart (1863-1915) conheceram-se no verão de 1913 durante um curso de pintura em vidro e mosaico e ficaram em contacto trocando cartas com muita frequência. No ano da feira de Colónia, Scheerbart publicou o seu ensaio Glasarchitektur (arquitectura de vidro) onde defendia uma futura sociedade industrial em que o vidro era considerado como material de construção emblemático (mais tarde, em 1917, Taut publicará o seu livro Alpine Architektur que será fortemente influenciado por esta obra). Estas teorias foram publicadas, sob a forma de um conjunto de textos, num volume das edições Sturm de Berlim e foram dedicados a Bruno Taut que tinha participado na sua formulação.
Apesar de ser clara a ligação intelectual que une Taut a Scheerbart, sobretudo no projecto do pavilhão do vidro para a feira de Colónia, não é de forma alguma clara como relação se manteve tão viva e produtiva apesar das profundas diferenças de carácter que separavam estas duas personalidades. Taut era uma pessoa de trato extremamente sério e severo, desde muito cedo totalmente dedicado ao trabalho e muito pouco dado a brincadeiras. Na sua biografia é possível ler que passou os primeiros anos da sua formação profissional na solidão, sem amigos, para ter tempo para estudar ou para participar em concursos de arquitectura cujos resultados lhe dariam créditos para ingressar nos melhores escritórios do país. Scheerbart, pelo contrário, viveu uma vida desregulada em muita boa parte passada a beber nos círculos literários berlinenses ou a escrever livros para ganhar dinheiro. Em 1900 casou com Anna Sommer, uma pacata viúva 10 anos mais velha, à qual alugava o quarto onde morava e com a qual teve uma relação extremamente turbulenta que esteve na origem do livro Von Zimmer zu Zimmer. 70 und seine Frau Schmoll um Liebesbriefe des Dichters (De sala em sala. 70 cartas de mau humor e amor do poeta à sua esposa). Em 1915 chegou a publicar o livro Das Perpetuum mobile. Die Geschichte einer Erfindung em que o autor tentava defender a absurda possibilidade de construir um instrumento de moto perpétuo.
Como Taut ficou influenciado por uma pessoa tão diferente dele é, de facto, um mistério; até porque também não é muito clara porque ele, de forma muito repentina, se entusiasmou com o vidro de tal forma como o fez. Uma das razões que posso encontrar é a necessidade que Taut tinha em reagir à condição política através de um manifesto arquitectónico. Não podemos esquecer que quando Hitler subiu ao poder Taut, então professor na universidade de Berlim, deixou a sua carreira para se exilar para o Japão, antes, e para a Turquia, depois. Esta pode ter sido a causa para ter feito uma espécie de propaganda cruzada com Scheerbart com o fim de potenciar a visibilidade de ambos; coisa que claramente o poeta não podia ver com bons olhos pelas razões já apontadas. O próprio Scheerbart morreu em 1915, na sequência de uma prolongada greve de fome, em protesto contra a guerra.

Outra ligação de Taut ao vidro encontra-se a partir de 1919 quando este é promotor da Glaserne Kette (corrente de vidro), uma espécie de “correspondência utópica” que, durante alguns anos, foi mantida viva pelas cartas escritas por treze arquitectos. Walter Gropius, cujo heterónimo neste circulo era Maß, Hans Scharoun, que assinava Hannes, ou Max Taut eram alguns entre os que, através de textos e de desenhos, procuraram encontrar os princípios fundadores para uma arquitectura do século XX. Mais uma vez o recurso ao vidro como material simbólico da modernidade é evidente: uma corrente de vidro é algo que ultrapassa uma simples relação de união ou de partilha, é algo que, pensando no momento histórico, implica uma invisibilidade pela transparência e, ao mesmo tempo, uma luminosidade, um brilho que une os seus elementos.
 
Mais alguma coisa pode ser dita acerca da caixa do brinquedo e, mais especificamente, acerca da sua forma octogonal que não é certamente casual uma vez que esta forma geométrica se encontra ancestralmente ligada a arquitectura. Desde as construções do Oriente, passando pelas bizantinas, as gregas e as romanas, esta forma geométrica esteve sempre ligada a uma forte simbologia. Muita arquitectura templária, por exemplo, remete para o número oito e o octógono para manifestar a passagem entre o quadrado da terra e o círculo do céu. Aos quatro pontos cardinais é preciso associar mais quatro pontos intermédios chegando aos oito pontos dos oito ventos, como a torre dos ventos em Atenas, justamente de base octogonal. O octógono é construído, partindo de um quadrado, através de uma operação geométrica chamada “o sacro corte”. O lugar onde acontece o ritual de entrada no mundo cristão é o baptistério, um edifício frequentemente de planta octogonal. O número oito é o símbolo da Virgem Maria, intermediária entre o homem e Cristo e a estrela com oito pontas o seu símbolo. Mas também para o Islão esta figura procura representar a ligação entre um mundo fenoménico e um humano, material e corporal.
O renascimento redescobre a utilidade do octógono, não só de um ponto de vista simbólico mas também construtivo e, em geral, arquitectónico. É de base octogonal a cúpula de Santa Maria del Fiore em Florença, obra-prima do Brunelleschi. Esta utilidade é aplicada, na segunda metade do século XIX, por Orson Fowler (1809-87). O que liga este pseudo-cientista à arquitectura é o facto dele, em 1853, ter publicado um livro com o título “A Home for All or The Gravel Wall and Octagon Mode of Building New, Cheap, Convenient, Superior and Adapted to Rich and Poor” onde defendia o octógono como a melhor forma para uma habitação. Estes são só alguns exemplos aos quais, querendo, podia-se juntar a Cúpula da Rocha, em Jerusalém, muitos edifícios bizantinos ou torres medievais; entre edifícios ou partes de edifícios a lista seria praticamente interminável.
Para compreender a ligação de Taut ao octógono é preciso não esquecer que este teve, desde muito cedo, ligações intelectuais tanto com o oriente, tendo vivido no Japão entre 1933 e 1936, como com o médio-oriente, desde 1936 até ao dia da sua morte, em Istambul. Além disso, muito antes de ter desenhado o brinquedo, em 1916, participou, sob pedido da direcção do Werkbund, num concurso para a construção de uma “casa da amizade” turco-alemã em Istambul com um projecto que não foi aceite. A cultura simbólica turca e bizantina não lhe era estranha e, precisamente neste concurso, procurou uma síntese arquitectural das antigas tradições turcas.

Finalmente não posso deixar de lembrar o enorme interesse e talento que Taut tinha para a geometria e para a matemática. Não sabemos se este talento era real ou fruto da sua fantasia e convicção mas a verdade é que as figuras geométricas dos brinquedos denunciam uma particular atenção à modulação e à composição geométrica juntamente com um grande rigor dimensional e formal. Taut tinha sido aluno num liceu que confinava com a igreja e com a capela onde tinha sido sepultado Emanuel Kant. Desde então tinha-se convencido que o espírito do grande filósofo, que devia certamente estar presente na sua escola, tivesse aumentado as suas capacidades para o pensamento teórico e abstracto. Esta certeza estava de tal forma enraizada nele que ainda em fim de vida argumentava frequentemente citando Kant.

É agora evidente que quando, em 1919, Taut projecta o Dandanah, pensa num brinquedo que possa conter toda a complexidade da arquitectura teórica que estava a organizar e a divulgar naquela altura. Apesar do vidro não ser, de forma alguma, um material comum para um brinquedo, razão pela qual poucos exemplares destas construções chegaram até à actualidade inteiros, o Dandanah tem que ser observado para além da sua utilização lúdica. Nele se encontram muito dos elementos teóricos e materiais que acompanharam a vida profissional e intelectual de Bruno Taut, os mesmo que o consagraram num marco incontornável da arquitectura do século XX. Além disso, Dandanah é certamente um dos poucos brinquedos onde se encontra algo que certamente as crianças ainda não compreendem: uma verdadeira utopia.

Actualmente uma versão do brinquedo é produzida pela Vitra e custa cerca de 900 euros.

Algumas fontes:
Junghanns, Kurt. 1984. Bruno Taut. 1880-1938. Milano: Franco Angeli
Taut, Bruno. 1920. Escritos 1919-1920. Madrid: Biblioteca de Arquitectura El Croquis Editorial

1 comment:

  1. Que interessante! Bruno Taut era um gênio... sempre descubro algo novo sobre ele!

    ps: uma pena o brinquedo custar tão caro...

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