Alfred Carlton Gilbert, o homem que salvou o Natal

Desde que comecei a escrever sobre as ligações que existem entre brinquedos e Arquitectura fui percebendo, mais nitidamente, que as alterações que aconteceram por volta dos anos 1970 são, na grande maioria, irreversíveis. As razões são muitas: a adopção do plástico como material de preferência absoluta (por óbvias razões económicas), a entrada em vigor de uma legislação severa para tutelar a saúde das crianças, a vulgarização da electrónica e, mais recentemente, dos dispositivos digitais tanto no mundo dos adultos como no das crianças. Estas são só algumas das razões que provocaram uma verdadeira revolução na produção dos brinquedos.

Um dos exemplos mais claro desta minha linha de pensamento encontra-se na história de um norte-americano que fez sonhar várias gerações de crianças com brinquedos de rara beleza, inteligência e capacidade pedagógica mas que, no entanto, desapareceram quase por completo. Esta é uma daquelas histórias dos tempos passados em que uma vida se transformou numa lenda. Prestem atenção.

Alfred Carlton Gilbert nasceu em Salem, Oregon, EUA, no dia 13 de Fevereiro de 1884. Começou o seu percurso académico na Pacific University e, em 1902 transferiu-se para a Yale University onde se licenciou em Medicina do Desporto, que nunca chegou a praticar. Desde muito cedo financiou os estudos trabalhando como mágico e chegando a ganhar 100 dólares por noite, quantia que, nos princípios de 1900, era uma pequena fortuna. A sua destreza e paixão pela magia, que tinha desde muito novo, levou-o mais tarde, em 1909, a fundar a Mysto Manufacturing, uma firma que, na altura, produzia truques de magia para as crianças. Desde o liceu, Gilbert destacou-se entre os seus colegas pelos dotes atléticos: era um exímio lutador, um corredor veloz e incansável e um excelente futebolista. Em 1900, ultrapassou o recorde mundial de elevações na barra com 39 subidas num 1 minuto. Conseguiu dois recordes mundiais no salto com a vara: um em 1906, outro em 1908. Em 1906, alcançou os 3,66 metros de altura nos jogos atléticos de Nova Iorque. Em 1908, pouco antes de ultimar a licenciatura, participou nos jogos olímpicos de Londres onde ganhou uma medalha de ouro na mesma modalidade com a medida de 3,71 metros de altura.

Além dos dotes atléticos, Guilbert possuia uma mente verdadeiramente fervilhante. Ao longo da sua vida registou mais de 150 patentes, algumas de produtos eléctricos outras, a maior parte, de brinquedos. De facto, a razão pela qual a maioria das pessoas que já conhecia este inventor deve-se ao facto de Guilbert ter projectado e desenvolvido um dos brinquedos mais populares do século XX: o Erector Set. A lenda conta que, em 1911, Guilbert, numa das viagens entre New Haven, onde vivia, e Nova Iorque, teve a inspiração para projectar e construir um sistema de construções produzido em metal inspirado na arquitectura norte-americana em ferro do início do século XX. Guilbert sempre defendeu a originalidade da sua invenção, todavia, a verdade é que um ano antes desta ter sido lançada no mercado já existia, no mercado inglês o Meccano do inglês Frank Hornby. O Meccano era, de facto, demasiado parecido para que se possa falar em coincidências: inventado e patenteado em 1901, começou a ser produzido em 1908 e seguiu uma história próxima à da Erector, tão próxima que o destino deste último será, como direi mais adiante, de ser adquirida pela Meccano que, por várias razões, conseguiu sobreviver até aos dias de hoje.

O primeiro Erector Set, produzido pela Mysto Manufacturing, foi colocado no mercado em 1913 com 8 caixas diferentes, numeradas de 1 a 8. A caixa número 3 tinha peças suficientes para construir 55 modelos diferentes e custava só 3 dólares. A versão mais completa, a caixa nº 8, trazia 740 peças, uma chave de fendas e um motor eléctrico. Com todas estas peças era possível construir 100 modelos, alguns dos quais motorizados. Esta caixa custava 25 dólares e tinha uma pequena fechadura para que os irmãos mais novos não pudessem desarrumar as centenas de pequenas peças metálicas. Para compreender a qualidade intelectual e cultural destes brinquedos é necessário voltar ao princípio do século XX e verificar que as crianças dessa época tiveram uma oportunidade talvez única na história: brincar com uma versão reduzida dos grandes paradigmas de produção que lhe eram contemporâneos. 
Em 1902 foi ultimado o Flatiron Building em Nova Iorque (o primeiro arranha-céu e, durante muitos anos, o edifício mais alto da cidade). Em 1903 os irmãos Wright, produtores de bicicletas, conseguiram levar a cabo o que ficou registado pela Federação Internacional de Aeronáutica (FAI) como o primeiro voo humano totalmente controlado sobre um meio mecânico, o Flyer 1. Em 1908 Henry Ford começou a produção do modelo Ford T, o primeiro carro a ser produzido em massa. Se conseguirmos imaginar o fervor tecnológico destes anos conseguimos compreender a perfeita sintonia que existia entre o Erector Set e o seu tempo.

Guilber não se limitou a produzir e vender os brinquedos que produzia. Apesar de colocar as instruções no interior de cada caixa, encorajava as crianças a criar os próprios projectos chegando, para isso, a oferecer prémios: as construções mais inovadoras podiam ganhar carros, póneis e grandes quantias de dinheiro. Com centenas de cartas e de projectos que eram enviados todas as semanas e não tendo tempo para fazer uma selecção justa, Guilbert fundou o Guilbert Institute of Erector Engineering que passou a atribuir o título de Engenheiro a todos os que enviavam um novo modelo. Para quem tivesse apresentado mais projectos, além de ganhar a subscrição da revista Erector Tips, podia ficar com o título de “Expert Engineer” ou de “Master Engineer”. Com um marketing tão intenso, a A. C. Guilbert Company tornou-se a maior empresa de produção de brinquedos dos Estados Unidos, tendo continuado a alterar e melhorar os conjuntos da Erector Set durante várias décadas. 


O Erector foi de tal forma divulgado, vendido e utilizado que o seu uso ultrapassou, muitas vezes, a mera brincadeira tendo alimentado, em muitos casos, histórias de sucesso nas mais variadas áreas. Uma delas é a de Donald Bailey, um engenheiro funcionário do British War Office, que tinha o hobby de desenhar e construir modelos de pontes. Em 1940 apresentou aos seus superiores um projecto de uma ponte feita por elementos prefabricados. O modelo era integralmente feito com peças Erector e convenceu os superiores de Bailey que valia a pena formar uma equipa de engenheiros do Britain's Royal Engineers para avançar com o projecto. Estes, após terem verificado a sua exequibilidade, mandaram construir uma versão em escala real no Military Engineering Experimental Establishment (MEXE), perto de Dorset, Inglaterra. A ponte demonstrou uma enorme facilidade de construção, transporte, adaptabilidade e manutenção. A partir de 1944, as pontes Bailey, que ficaram com o nome do inventor original apesar de uma batalha legal para lhe tirar a patente, começaram a ser produzidas tanto em Inglaterra como nos EUA tento sido extremamente úteis em muitas batalhas da segunda Guerra Mundial, chegando a serem citadas pelo presidente dos Estado Unidos Eisenhower como um dos três mais importantes avanços tecnológicos da guerra, a par do radar e dos aviões bombardeiros.

Outra história refere-se ao estudante da Yale Medical School, William Sewell que, em 1949, utilizou as peças Erector para construir o que ficou conhecido na história da medicina como o primeiro coração artificial. Numa experiência, Sewell conseguiu manter um cão com vida durante 63 minutos. Em muitas outras invenções o Erector teve um papel determinante; é o caso das atracções do parque de diversões Disney Adventure na Califórnia ou as lentes de contacto moles inventadas pelo químico checo Otto Wichterle em 1961 utilizando, justamente, um engenho construído com peças Erector. De qualquer forma, para aqueles que queiram saber mais existe o interessantíssimo livro de Bruce Watson intitulado The Man Who Changed How Boys and Toys Were Made.

Guilbert conhecia a importância da brincadeira e, além do sistema Erector, desenvolveu e colocou á venda uma grande variedade de outros produtos. O interessante é que a maioria destes objectos, hoje em dia, seria absolutamente proibida. Além de telescópios, puzzles metálicos ou miniaturas de comboios, eram vendidas caixas para se fazerem experiências químicas (com cianeto e cloro), um kit para soprar vidro (que necessitava de atingir os 1250º para transformar a areia em vidro), e um kit de energia atómica (sim leram bem… a caixa até tinha algumas peças de urânio radioactivo e um contador Geiger). Como mudaram os tempos, e como mudaram os brinquedos...

A utilidade dos brinquedos era considerada de tal ordem importante que, em 1918, Guilbert tomou uma decisão que o fez ficar na história com a alcunha de “o homem que salvou o Natal”. Tal como em todo o mundo, nos Estado Unidos, a Primeira Guerra Mundial era uma prioridade nacional e absorvia todos os esforços da indústria e da economia. Nesse contexto Concelho de Defesa Nacional discutiu a possibilidade de impor uma restrição na venda dos brinquedos. Na altura Guilbert estava a acabar o seu mandato de dois anos como director do Toy Manufacturers of Amercan e conseguiu obter uma audiência com o Concelho de Defesa Nacional em Washington; levou consigo várias caixas de Erector Set, além de muitos outros brinquedos que a A. C. Guilbert tinha em produção. Quando lhe foi permitido entrar proferiu um discurso memorável onde chegou a dizer: “You can’t stop toy production. These are your future architects. These are your future engineers.” Os membros do Concelho retiraram a discussão da ordem do dia, levaram os brinquedos para casa e Guilbert transformou-se num herói. Esta história é contada no filme de 2002 "The man who saved the christmas", protagonizado por Jason Alexander, o mesmo actor que ficou odiado por todos quando teve o papel de George Costanza da serie televisiva Seinfeld.

Nos anos 1920 a A. C. Guilbert atingiu o seu auge e a gama de peças foi aumentada para permitir a construção de modelos mais complexos. A empresa aguentou-se atravessando a Grande Depressão de 1929. Mais tarde, depois da Segunda Guerra Mundial os EUA assistiram ao Baby-Boom e entre 1940 e 1960 o Erector era um dos brinquedos obrigatórios para qualquer criança americana. Para compreender a difusão e a fama que este brinquedo tinha atingido basta fazer uma rápida pesquisa na Internet ou nos sites de leilões e constatar a quantidade de material que, ainda hoje, se encontra em circulação.

A partir de 1960 o plástico começou a ser o material dominante nos brinquedos. A Lego tornou-se o principal protagonista e o Erector já não possuia o halo de modernidade que tinha no princípio do século. Alfred Carlton Gilbert morreu em 1961 com a idade de 77 anos; no ano seguinte a marca será comprada pela sua rival histórica: a Meccano. Nos EUA ainda se vendem caixas Erector (praticamente iguais às que se vendem por cá sob o nome Meccano), mas muito se perdeu. Actualmente, tanto a Meccano como a Erector não passam de brinquedos bastante banais que em pouco lembram o antigo esplendor que estes produtos chegaram a ter no passado.

Moral da história? Sem dúvida os brinquedos mudaram muito; como já tive a oportunidade de escrever, os anos 1970 e a electrónica feriram de morte os jogos de construções. Mas outras coisas mudaram também. Não falo do facto de que já não é muito consensual pôr os nossos filhos a brincar com urânio radioactivo ou a fazer experiências químicas com cianeto, refiro-me a uma forma de brincar altamente educativa em que a manualidade e o conhecimento das bases dos fenómenos está sempre presente. Apertar um parafuso, construir uma torre que fique de pé ou ligar os pólos de uma bateria de forma correcta a um motor, são operações aparentemente básicas mas que reúnem um conhecimento pragmático que as novas gerações já não podem aprender através da brincadeira. É ainda a velha história do ensino profissionalizante que foi sistematicamente desmantelado ao longo de três décadas de educação em que se pensava que a sociedade podia ser feita só de trolhas ou engenheiros. Foi-se perdendo um inteiro bloco intermédio da sociedade e, com este, do conhecimento e de oportunidades de inovação. A manualidade não é necessariamente uma competência inferior às meramente intelectuais, é uma forma de expressão e de realização extremamente elevada e nobre.
Para quem tenha vontade de continuar a pensar no assunto deixo uma frase do filósofo Anaxágoras: “O homem é inteligente porque tem mãos”.

Alguma bibliografia de e sobre Guilbert:
Gilbert, A.C., with Marshall McClintock. The Man Who Lived in Paradise. New York: Rhinehart, 1954.
Watson, Bruce. "The Man Who Saved Christmas." Smithsonian Magazine, May 1999, 120-34.
Watson, Bruce. The Man Who Changed How Boys and Toys Were Made: The Life and Times of A. C. Gilbert. Reprint ed. New York: Penguin Books, 2003.

E alguns sites sobre o Erector Set:
http://www.jitterbuzz.com/erector.html
http://www.girdersandgears.com/
http://www.eliwhitney.org/new/museum/-gilbert-project/-collections/erector-sets

Uma casa como um brinquedo

Quem tem filhos sabe como as crianças mudam as nossas casas.  Desde as paredes pintadas, passando pela constante desarrumação, existem muitos aspectos que só muito raramente são tidos em conta quanto uma casa é desenhada. Poucos pensam como seriam as casas se as crianças entrassem no projecto de Arquitectura desde as primeiras ideias. Se, por outras palavras, o arquitecto tentasse desenhar, além de uma casa, uma espécie de grande brinquedo habitável. 
Neste projecto, do atelier indonésio Aboday, a casa é pensada como espaço de crescimento e de divertimento do filho dos donos. Do site Dezeen: "The house will be mostly occupied by a multi generation family of 3. However, the king of the house is a 5 year old boy who thinks that life is all about play, hence the design of the house.

Assim, o elemento mais característico desta casa torna-se um escorrega em betão que une directamente o quarto com a sala de jantar. Já não há desculpas para chegar atrasado quando o jantar estiver na mesa...



Fontes: http://www.dezeen.com