Charles e Ray Eames - Das casas aos piões

Apesar de ter construídos só alguns edifícios, o casal Charles e Ray Eames ocupa um lugar de pleno direito na história da Arquitectura da segunda metade do século XX. Este lugar foi-lhes garantido pela capacidade de criar obras de referência em campos tão diversificados como são a arquitectura, o projecto de instalações, o design industrial, o Cinema e, entre outros, o desenho de brinquedos. Uma capacidade de percorrer diferentes âmbitos artísticos com recíprocas contaminações e resultados verdadeiramente notáveis.
Creio que todos nós, algum dia, já nos sentámos numa cadeira desenhada por Eames (ainda hoje sinónimos de modernidade e de bom gosto) e alguns já tiveram oportunidade de ver um dos seus filmes como o famoso “Power of ten”, de 1968, em que o espectador assiste a um percurso que o leva desde o espaço sideral até ao interior do corpo humano com saltos de distâncias medidas em potências de dez metros. Algo muito parecido com o que hoje conseguimos fazer com o zoom de Google Earth.

Charles e Ray adoravam brinquedos, possuíam uma vasta colecção que lhes servia como material para realizar filmes e como fonte de inspiração para vários projectos. Não é casual, por exemplo, a semelhança entre a casa Case Study House #8, provavelmente o edifício mais conhecido, e um papagaio. No seu interessante artigo Toy , Tamar Zinguer, professora da Cooper Union de Nova York, lembra que Charles Eames tinha uma paixão por papagaios e era frequentemente convidado para participar em competições. Num artigo de Setembro de 1950, publicado pela revista Architectural Fórum, com o título “Life in a chinese kite”, a casa é descrita como exemplo de eficiência tecnológica na utilização de materiais, cores e transparência fazendo o paralelo explícito com a construção de papagaios. Os mesmos papagaios que aparecem regularmente como elementos de decoração nos projectos dos Eames e que eram considerados, por Charles, um conúbio entre tecnologia, design e brincadeira. Diziam que projectavam brinquedos para os próprios netos e para os filhos dos colaboradores e dos amigos, mas a verdade era que para eles os brinquedos eram um assunto muito sério e que ocupava uma parte importante da actividade do escritório. Charles defendia que os brinquedos transportam os paradigmas tecnológicos e culturais da época em que são produzidos.

Os primeiros produtos surgem em 1945 quando os Eames aplicam a tecnologia da moldagem de madeira contraplacada ao fabrico de mobiliário para crianças. Cadeiras, mesas e bancos além de uma série de animais (entre os outros o famoso elefante) são realizados neste material inovador com o qual, entretanto, o escritório Eames tinha ganho dinheiro vendendo milhares de talas anatómicas ao exército dos Estados Unidos. Aliás, as talas foram uma das principais fontes de rendimento do casal desde 1941 até a morte de Charles, em 1978.

São de 1950 as máscaras e disfarces de animais para crianças e para adultos, que foram os primeiros brinquedos produzidos em massa. Chegaram a ser vendidas pela Tigrett Enterprises, uma produtora de brinquedos do Tennessee que, mais tarde, irá produzir o conhecido cabide com bolinhas coloridas desenhado pelos mesmos autores. As máscaras eram produzidas com cartolina e tinha formas de pássaros, peixes a outros animas. Eram vendidas  pré-recortadas e eram montadas em casa pelos compradores. Nunca chegaram a ser um artigo de grande sucesso mas serviram como experiência de materiais e de produção para outros brinquedos.

Um ano mais tarde é colocado à venda o que é certamente um dos brinquedos mais interessantes destes arquitectos: The Toy. Era vendido numa caixa colorida em forma de tubo com secção hexagonal onde, numa das faces, podia-se ler: “Large-Colorful-Easy to Assemble-For Creating A Light, Bright Expandable World Large Enought To Play In and Around”. No interior encontravam-se painéis triangulares e quadrados feitos em tecido de plástico, também este um material que tinha sido recentemente descoberto. Os painéis, de cores vivas, tinham umas baínhas nos lados onde podiam ser enfiados uns pauzinhos de madeira permitindo construir estruturas tridimensionais abertas ou fechadas. As instruções diziam: “The Toy gives each one the means with which to express himself in big structures and brilliant color”. Na sua versão original, The Toy era vendido numa caixa quadrada e os paineis eram rígidos. Sob conselho da firma que o comercializava, a Sears, Roebuck & Company, a embalagem passou para a sua versão em tubo e os paineis tornaram-se flexíveis para serem enrolados em volta dos pauzinhos no interior da embalagem. Já nesta nova configuração, o brinquedo chegou a ser objecto de um artigo publicado em 16 de Julho de 1951 na revista LIFE onde foi definido como “one of the most imaginative playthings of the year (...) to intrigue Young men (5-10) who have an engineering or architectural bent and Young ladies (same ages) with a homing instinct”. The Toy, que podia ser considerado como um papagaio desmontado, apareceu frequentemente em fotografias publicitárias da altura e é, juntamente com House of Cards, um dos brinquedos mais paradigmáticos dos Eames pela sua flexibilidade criativa e pela sua eficácia construtiva. Em 1952 foi produzida uma versão reduzida e com algumas variações chamada The Little Toy. Neste modelo, os painéis eram rígidos e existiam aros triangulares e quadrados já prontos para serem unidos com fios de arame. The toy é hoje um artigo de colecção, os poucos exemplares que foram transaccionados recentemente atingiram valores próximos dos 1000 dólares, em leilões especializados.

É de 1952 o jogo House of Cards; um baralho de 54 cartas, cada uma com seis ranhuras, duas em cada lado comprido e uma em cada lado curto. As ranhuras permitiam encaixar as cartas de forma a construir estruturas tridimensionais rectas ou curvas. Cada carta tinha, de um dos lados, uma imagem fotográfica ou um padrão gráfico e, do outro, um asterisco preto. Uma segunda versão tinha, do lado das imagens, reproduções daqueles que os Eames chamavam “coisas boas” como eram objectos familiares, animais ou imagens da natureza. Algumas cartas tinha imagens de brinquedos, tesouras, botões, novelos de lá ou ainda dedais ou pastéis de cor, entre outras coisas. As imagens foram escolhidas entre centenas e foram envolvidos pessoalmente todos os funcionários do escritório tanto na pesquisa como na escolha, mas a selecção final era de responsabilidade do designer de tecidos Alexander Girard que colaborava regularmente com o escritório dos Eames. As cartas ficaram em produção nos EUA até 1961, sendo que, em 1953, começou a ser produzida uma versão gigante e mais erudita e, em 1970, uma versão com imagens referentes ao universo dos computadores chamada, justamente, Computer House of Cards.

Alexander Girard, cujas bonecas são ainda hoje produzidas pela Vitra, participou também no projecto do brinquedo The Coloring Toy de 1955. Produzido pela Tigrett Enterprises, o conjunto continha cartolinas pré-recortadas, pastéis de cera e ataches. As cartolinas podiam ser usadas como escantilhões para pintar figuras e as peças de cartolina separadas podiam ser unidas com os ataches para formar bonecos articulados que, também, podiam ser pintados. Nas instruções havia uma pequena aula de pedagogia: “The purpose of The Coloring Toy is to provide a sort of jet assist into a world of color, drawing, shapes, and Play. This world discovered and rediscovered by all children and is their own creation. The Coloring Toy does not presume to make artists out of children or to teach them how to play (children are far ahead of us on both counts). But we do hope that the contents of this box and the clues it offers will stimulate the use if these and other materials in an ever-expanding variety of ways”. 

A capacidade inventiva de Charles Eames era de tal ordem que, em 1957, construiu a Solar Do-Nothing Machine que, como dizia o autor: “não é suposto fazer nada, a sua função é ser” mas cujos movimentos e brilhos metálicos fascinava crianças e adultos. Esta máquina foi realizada para uma encomenda da Alcoa, um grupo industrial norte-americano que na altura apostava fortemente na utilização de alumínio e tinha uma campanha de encomendas/patrocínios a artistas ou designers conhecidos. Quando Charles pediu ajuda à universidade para desenvolver um sistema mais eficiente, esta manifestou logo interesse, não para ajudar mas sim para tentar compreender como funcionaria umas das primeiras máquinas a energia solar.

Em 1959, o escritório Eames volta ao brinquedos com o projecto da Revell Toy House. Uma casa de bonecas projectada para a fábrica de brinquedos Revell, com um sistema construtivo e uma linguagem arquitectural muito idêntica à utilizada na Case Study House #8 projectada e construída dez anos antes. A Revell queria incluir este artigo numa linha de brinquedos ligados a uma ideia de “casa moderna”, um projecto que combinava perfeitamente com o fervor doméstico do pós-guerra norte-americano. O kit contava com um sistema de unidades modulares constituídas por paredes e grelhas de plástico obtidas por injecção. A montagem destas componentes permitia realizar casas com vários quartos de um piso ou casas com mais pisos. O protótipo tinha miniaturas de mobiliário feitas em plástico moldado além de uma grande quantidade de outros acessórios. A produção nunca chegou a arrancar porque existiam grandes dificuldades em produzir as peças dada a sua grande fragilidade e a precisão necessária para garantir a qualidade exigida. Mesmo assim a Herman Miller (a mesma firma que produzia as peças de mobiliário desenhadas por Eames) chegou a produzir uma versão em tamanho reduzido destas casas que utilizava como modelo de exposição da sua produção.

Em 1969, Charles Eames realiza “Tops”, um filme fruto do fascínio que tinha por piões. O casal possuía uma colecção muito extensa com exemplares vindos da China, da Índia, do Japão ou do México, além de ter construído mais de uma centena por conta própria. O filme, além de mostrar como, ao longo do tempo, o pião representou um brinquedo onde se reflectia uma capacidade artesanal e artística de uma determinada cultura, consegue explicar alguns fenómenos físicos que estão, justamente, presentes no seu funcionamento (o filme era frequentemente projectado para os estudantes do MIT, num curso de física). 

Actualmente só alguns dos brinquedos desenhados por Eames se encontram à venda. O House of Cards ainda é produzido e imitado pelo mundo fora (até existe uma versão portuguesa). Os bancos para crianças em contraplacado moldado em forma de elefante são produzido pela Vitra em várias cores e os filmes podem ser comprados já digitalizados em DVD.
Os brinquedos de Eames são mais um exemplo de objectos onde se condensa, numa função tão aparentemente banal como é a do brincar, não só o zeitgeist de uma época, como a estrutura intelectual do seu autor. Temas como a modularidade, a variação cromática e gráfica, o conforto e a ergonomia ou a produção em série eram temas caros ao casal Eames que facilmente se reconhecem nos seus brinquedos. Às vezes a criança é convidada a lidar com a beleza das imagens de objectos domésticos para descobrir e compreender uma cultura material que lhe pertence, como é o caso de House of Cards. Outras é estimulada a explorar a tridimensionalidade do espaço e da sua ocupação, enquanto experimenta combinações cromáticas e apercebe-se da importância das regras da física, como é o caso do The Toy.  Outras ainda, como acontece com a casa de bonecas projectada pela Revell, é-lhe pedido para lidar com paradigmas formais e domésticos absolutamente inovadores em relação a uma cultura instalada, chegando a desafiar a atávica imagem mental e material de casa.

Fontes:
Neuhart John, Marilyn Neuhart & Ray Eames. 1989. Eames design : the work of the office of Charles and Ray Eames - New York : Harry Abrams
http://www.vitra.com
http://www.americanmemorabilia.com
http://www.eamesoffice.com/

Playtecture

Da colaboração entre o estúdio interdisciplinar Dass e a NearInteraction nasceu Playtecture, uma instalação interactiva que esteve presente no evento Habitar Portugal de 4 de Outubro a 1 de Novembro de 2009 em Cascais. Uma espécie de conúbio entre um Tetris gigante e um SymCity sólido, Playtecture é um espaço lúdico interactivo onde um sistema digital reage às composições espaciais feitas pelos utilizadores. Do site: “Como vai ser a cidade do futuro? Playtecture é um jogo ficcional de arquitectura, que explora o tema da cidade do futuro, através da criação de um ambiente urbano dinâmico, lúdico e emocional que muda e interage em tempo real com o público”.



Um dos aspectos mais interessantes deste projecto é o facto de ser possível jogar com desconhecidos que se encontram casualmente na exposição. Desta forma a criança, ou o adulto, compreende e apreende a importância da iteração com os outros na construção dialéctica do espaço urbano. Apreende que as dinâmicas da cidade não dependem, nunca, das decisões individuais mas passam sempre pela negociação com os outros ou mesmo entre os outros.  

Walter Bejamin e os brinquedos

Estou a ler "Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação" de Walter Benjamin. Uma recolha de textos do filósofo alemão da editorial brasileira Summus (São Paulo,1984). No texto "História cultura do brinquedo", escrito em 1928, encontrei este paragrafo particularmente esclarecedor do meu interesse em relação aos brinquedos de arquitectura:

"Mas certamente jamais se chegaria à realidade ou ao conceito do brinquedo se se tentasse explicá-lo unicamente pelo espírito das crianças. Se a criança não é nenhum Robinson Crusoe, assim também as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas sim uma parte do povo e da classe de que provém. Da mesma forma seus brinquedos não dão testemunho de uma vida autónoma e especial; são, isso sim, um mudo diálogo simbólico entre ela e o povo".