Bruno Taut - da utopia aos brinquedos

Um dos aspectos que mais me interessa em alguns brinquedos desenhados por arquitectos é o de conseguir serem representativos não só do pensamento do autor como de todo o contexto arquitectónico e intelectual, no qual foram pensados e produzidos. É o caso deste brinquedo, umas construções desenhadas pelo arquitecto alemão Bruno Taut (1880-1938) em 1919, em que nenhum aspecto ficou deixado ao acaso e tudo remete para uma narrativa histórica e disciplinarmente mais complexa e articulada. Vamos ver:

Para os arquitectos, uma personagem incontornável mas praticamente desconhecido entre os não arquitectos, Bruno Taut é um dos mais importantes arquitectos expressionistas do século XX. Irmão de Max Taut, também arquitecto, Bruno teve uma carreira que possui duas facetas distintas que se cruzam frequentemente ao longo da vida profissional: uma de carácter mais intelectual e utópico e outra mais ligada ao funcionalismo e aos projectos de habitação, sobretudo no contexto do pós-guerra alemão. A criação deste brinquedo pertence, claramente, à fase mais intelectual e idealista podendo ser considerado como uma soma das várias linhas de pensamento que, naquela altura, Taut perseguia e, mais especificamente, do seu lado mais expressionista.

O princípio do século XX é extremamente rico na produção de construções. São centenas tanto de madeira como de pedra, mas este brinquedo possui uma singularidade que faz que em nada se pareça com as suas homólogas. Dandanah, o Palácio das fadas, é constituído por 62 peças em vidro colorido que se recolhem numa caixa octogonal em madeira. Esferas, cubos, paralelepípedos e prismas com arestas vivas e superfícies polidas podem ser utilizados para fazer construções ricas de transparências e de cores, caracterizadas por uma elegância e uma ligeireza que contradiz o peso da geometria das formas. Em suma, um brinquedo que nenhum pai minimamente prudente entregaria a um filho... De qualquer forma demonstra que Taut estava atento às teorias didácticas subjacentes às construções que apareceram em toda a parte na Europa, nos mais diferentes materiais, no seguimento das teorias pedagógicas de Fröbel ou de Pestalozzi, entre outros. Como já tive oportunidade de descrever, o princípio do século XX foi um período rico em grande alterações educacionais e escolares passando de uma visão estritamente doutrinal para uma maior liberdade do sujeito em construir o seu conhecimento. Um brinquedo de construções é um sistema aberto que possibilita um enorme número de variações possíveis partindo dos mesmo elementos base: a criança aprende fazendo (e brincando) não necessitando de uma doutrina prévia.

Antes de falar da utilização de vidro, vamos tentar perceber o porquê das cores.
A utilização da cor era algo de muito importante para Bruno Taut. Já nas primeiras obras, como foram as casas para a cidade-jardim em Falkenberg, de 1912/33, ou as do Siedlung em Magdeburgo de 1912/15, o arquitecto adoptou cores vivas como elemento linguístico característico da sua arquitectura. Em resposta a uma construção popular cinzenta, Taut mandava pintar os edifícios com cores contrastantes levantando, na altura, um grande debate crítico em torno da utilização da cor. O cinzento era, na altura, a cor dominante nos bairros populares e a burguesia costumava troçar destes edifícios apelidando-os de “pocilgas cinzentas”. Os moradores tentaram reagir a esta discriminação e quando pediram a Taut alguns conselhos para pintar as próprias casas este, após uma primeira fase pouco convicta, aconselhou-os a adoptar tintas com cores vivas. Foi um sucesso de tal ordem que em breve, sem nenhum tipo de publicidade, os bairros eram metas de visitas e estiveram envolvidos por uma polémica sobre a cor na arquitectura. As cores das casas transformaram-se em símbolos da luta de classe e as críticas da burguesia só serviam aos sócios das cooperativas como reconhecimentos da sua luta. A cor será, a partir desta altura, um dos elementos mais característico da obra de Bruno Taut e, mais tarde, de muita construção social do século XX pela Europa fora chegando a contagiar, em Portugal, muita obra, sobretudo no período pós 25 de Abril (veja-se, por exemplo, o bairro da Bouça no Porto do arquitecto Álvaro Siza em que o autor declarou explicitamente que a arquitectura de Taut foi fonte de inspiração).

Uma vez percebida a importância da cor, vamos avançar para explicar o porquê do brinquedo ser feito de vidro e, já agora, de vidro colorido.
Em 1914, o Deutscher Werkbund, a Federação Alemã do Trabalho (que mais tarde estará na origem da famosa escola Bauhaus), cuja função era a de juntar os esforços intelectuais e produtivos das artes com a da produção industrial, organizou uma exposição em Colónia. Para esta exposição Bruno Taut projectou o pavilhão da Indústria do vidro alemã, um edifício de planta circular cuja cobertura era uma grande cúpula prismática feita com paneis de vidro de cores diferentes (provavelmente as mesmas cores utilizadas no brinquedo Dandanah).
No interior encontrava-se uma cascata de água e as paredes eram revestidas em mosaico com partes metálicas e brilhantes. A luz que atravessava a cúpula criava, no seu interior, reflexos e brilhos de luz colorida criando um ambiente que tinha certamente algo de mágico. O edifício durou poucos meses e foi destruído em Agosto de 1914, quando rebentou a Primeira Guerra Mundial. O único testemunho que existe são umas fotografias a preto e branco que não conseguem transmitir a grandiosidade e o interesse desta obra. Segundo as crónicas da altura o pavilhão era considerado ridículo como exemplo da nova arquitectura. Por fora, o embasamento de betão era grosseiro e desinteressante e nada deixava intuir o seu interior; mas quando as pessoas entravam ficavam fascinadas de tal forma que este edifício se tornou uma das principais atracções da feira. No panfleto do pavilhão, Taut mandou escrever: “o edifício em vidro não tem nenhuma outra função que não seja a de ser bonito”. No seu interior uma frase do poeta e escritor alemão Paul Scheerbart: “o vidro nos leva para uma nova época, a cultura do tijolo só nos faz compaixão”.

Bruno Taut e Paul Scheerbart (1863-1915) conheceram-se no verão de 1913 durante um curso de pintura em vidro e mosaico e ficaram em contacto trocando cartas com muita frequência. No ano da feira de Colónia, Scheerbart publicou o seu ensaio Glasarchitektur (arquitectura de vidro) onde defendia uma futura sociedade industrial em que o vidro era considerado como material de construção emblemático (mais tarde, em 1917, Taut publicará o seu livro Alpine Architektur que será fortemente influenciado por esta obra). Estas teorias foram publicadas, sob a forma de um conjunto de textos, num volume das edições Sturm de Berlim e foram dedicados a Bruno Taut que tinha participado na sua formulação.
Apesar de ser clara a ligação intelectual que une Taut a Scheerbart, sobretudo no projecto do pavilhão do vidro para a feira de Colónia, não é de forma alguma clara como relação se manteve tão viva e produtiva apesar das profundas diferenças de carácter que separavam estas duas personalidades. Taut era uma pessoa de trato extremamente sério e severo, desde muito cedo totalmente dedicado ao trabalho e muito pouco dado a brincadeiras. Na sua biografia é possível ler que passou os primeiros anos da sua formação profissional na solidão, sem amigos, para ter tempo para estudar ou para participar em concursos de arquitectura cujos resultados lhe dariam créditos para ingressar nos melhores escritórios do país. Scheerbart, pelo contrário, viveu uma vida desregulada em muita boa parte passada a beber nos círculos literários berlinenses ou a escrever livros para ganhar dinheiro. Em 1900 casou com Anna Sommer, uma pacata viúva 10 anos mais velha, à qual alugava o quarto onde morava e com a qual teve uma relação extremamente turbulenta que esteve na origem do livro Von Zimmer zu Zimmer. 70 und seine Frau Schmoll um Liebesbriefe des Dichters (De sala em sala. 70 cartas de mau humor e amor do poeta à sua esposa). Em 1915 chegou a publicar o livro Das Perpetuum mobile. Die Geschichte einer Erfindung em que o autor tentava defender a absurda possibilidade de construir um instrumento de moto perpétuo.
Como Taut ficou influenciado por uma pessoa tão diferente dele é, de facto, um mistério; até porque também não é muito clara porque ele, de forma muito repentina, se entusiasmou com o vidro de tal forma como o fez. Uma das razões que posso encontrar é a necessidade que Taut tinha em reagir à condição política através de um manifesto arquitectónico. Não podemos esquecer que quando Hitler subiu ao poder Taut, então professor na universidade de Berlim, deixou a sua carreira para se exilar para o Japão, antes, e para a Turquia, depois. Esta pode ter sido a causa para ter feito uma espécie de propaganda cruzada com Scheerbart com o fim de potenciar a visibilidade de ambos; coisa que claramente o poeta não podia ver com bons olhos pelas razões já apontadas. O próprio Scheerbart morreu em 1915, na sequência de uma prolongada greve de fome, em protesto contra a guerra.

Outra ligação de Taut ao vidro encontra-se a partir de 1919 quando este é promotor da Glaserne Kette (corrente de vidro), uma espécie de “correspondência utópica” que, durante alguns anos, foi mantida viva pelas cartas escritas por treze arquitectos. Walter Gropius, cujo heterónimo neste circulo era Maß, Hans Scharoun, que assinava Hannes, ou Max Taut eram alguns entre os que, através de textos e de desenhos, procuraram encontrar os princípios fundadores para uma arquitectura do século XX. Mais uma vez o recurso ao vidro como material simbólico da modernidade é evidente: uma corrente de vidro é algo que ultrapassa uma simples relação de união ou de partilha, é algo que, pensando no momento histórico, implica uma invisibilidade pela transparência e, ao mesmo tempo, uma luminosidade, um brilho que une os seus elementos.
 
Mais alguma coisa pode ser dita acerca da caixa do brinquedo e, mais especificamente, acerca da sua forma octogonal que não é certamente casual uma vez que esta forma geométrica se encontra ancestralmente ligada a arquitectura. Desde as construções do Oriente, passando pelas bizantinas, as gregas e as romanas, esta forma geométrica esteve sempre ligada a uma forte simbologia. Muita arquitectura templária, por exemplo, remete para o número oito e o octógono para manifestar a passagem entre o quadrado da terra e o círculo do céu. Aos quatro pontos cardinais é preciso associar mais quatro pontos intermédios chegando aos oito pontos dos oito ventos, como a torre dos ventos em Atenas, justamente de base octogonal. O octógono é construído, partindo de um quadrado, através de uma operação geométrica chamada “o sacro corte”. O lugar onde acontece o ritual de entrada no mundo cristão é o baptistério, um edifício frequentemente de planta octogonal. O número oito é o símbolo da Virgem Maria, intermediária entre o homem e Cristo e a estrela com oito pontas o seu símbolo. Mas também para o Islão esta figura procura representar a ligação entre um mundo fenoménico e um humano, material e corporal.
O renascimento redescobre a utilidade do octógono, não só de um ponto de vista simbólico mas também construtivo e, em geral, arquitectónico. É de base octogonal a cúpula de Santa Maria del Fiore em Florença, obra-prima do Brunelleschi. Esta utilidade é aplicada, na segunda metade do século XIX, por Orson Fowler (1809-87). O que liga este pseudo-cientista à arquitectura é o facto dele, em 1853, ter publicado um livro com o título “A Home for All or The Gravel Wall and Octagon Mode of Building New, Cheap, Convenient, Superior and Adapted to Rich and Poor” onde defendia o octógono como a melhor forma para uma habitação. Estes são só alguns exemplos aos quais, querendo, podia-se juntar a Cúpula da Rocha, em Jerusalém, muitos edifícios bizantinos ou torres medievais; entre edifícios ou partes de edifícios a lista seria praticamente interminável.
Para compreender a ligação de Taut ao octógono é preciso não esquecer que este teve, desde muito cedo, ligações intelectuais tanto com o oriente, tendo vivido no Japão entre 1933 e 1936, como com o médio-oriente, desde 1936 até ao dia da sua morte, em Istambul. Além disso, muito antes de ter desenhado o brinquedo, em 1916, participou, sob pedido da direcção do Werkbund, num concurso para a construção de uma “casa da amizade” turco-alemã em Istambul com um projecto que não foi aceite. A cultura simbólica turca e bizantina não lhe era estranha e, precisamente neste concurso, procurou uma síntese arquitectural das antigas tradições turcas.

Finalmente não posso deixar de lembrar o enorme interesse e talento que Taut tinha para a geometria e para a matemática. Não sabemos se este talento era real ou fruto da sua fantasia e convicção mas a verdade é que as figuras geométricas dos brinquedos denunciam uma particular atenção à modulação e à composição geométrica juntamente com um grande rigor dimensional e formal. Taut tinha sido aluno num liceu que confinava com a igreja e com a capela onde tinha sido sepultado Emanuel Kant. Desde então tinha-se convencido que o espírito do grande filósofo, que devia certamente estar presente na sua escola, tivesse aumentado as suas capacidades para o pensamento teórico e abstracto. Esta certeza estava de tal forma enraizada nele que ainda em fim de vida argumentava frequentemente citando Kant.

É agora evidente que quando, em 1919, Taut projecta o Dandanah, pensa num brinquedo que possa conter toda a complexidade da arquitectura teórica que estava a organizar e a divulgar naquela altura. Apesar do vidro não ser, de forma alguma, um material comum para um brinquedo, razão pela qual poucos exemplares destas construções chegaram até à actualidade inteiros, o Dandanah tem que ser observado para além da sua utilização lúdica. Nele se encontram muito dos elementos teóricos e materiais que acompanharam a vida profissional e intelectual de Bruno Taut, os mesmo que o consagraram num marco incontornável da arquitectura do século XX. Além disso, Dandanah é certamente um dos poucos brinquedos onde se encontra algo que certamente as crianças ainda não compreendem: uma verdadeira utopia.

Actualmente uma versão do brinquedo é produzida pela Vitra e custa cerca de 900 euros.

Algumas fontes:
Junghanns, Kurt. 1984. Bruno Taut. 1880-1938. Milano: Franco Angeli
Taut, Bruno. 1920. Escritos 1919-1920. Madrid: Biblioteca de Arquitectura El Croquis Editorial

XVIII Automobilia - Feira Internacional de Trocas e Vendas (Aveiro)

Para quem esteja interessado, neste fim-de-semana vai haver a XVIII edição da Automobilia.
Do site da Camara de Aveiro: "O Clube Aveirense de Automóveis Antigos - CAAA promove, nos próximos dias 22 e 23 de Maio, mais uma edição da Automobilia de Aveiro – a décima oitava. Este evento é considerado por todos os aficionados do coleccionismo de veículos antigos, como o certame com maior expressão nacional e internacional do sector, tendo-se transformado numa espécie de “Mecca do coleccionismo” em Portugal." Além disso este evento é uma referência a nível nacional para a venda e troca de miniaturas e brinquedos.

No Sábado, dia 22, a exposição pode ser visitada das 10.00 às 21.00 horas, e no Domingo, dia 23, entre as 10.00 e as 20.00 horas.

Exposição de brinquedos portugueses na Maia

No Museu de História e Etnologia da Terra da Maia vai estar patente, até 28 de Agosto de 2011, a exposição “Brinquedos do nosso mundo”.
Do site: “A segunda fase da exposição (...) resulta de uma parceria  entre a Câmara Municipal da Maia e dois coleccionadores particulares, desenvolve-se em duas salas, uma dedicada exclusivamente ao brinquedo português e outra com uma colecção de bonecas de todo mundo e bonecas antigas e actuais, colecção esta que substitui a colecção de brinquedos do Museu de Seia que esteve patente até finais de Fevereiro.”

A parte da exposição relativa ao brinquedo português, de responsabilidade do coleccionador Carlos Anjo, apesar de ser bastante pequena consegue ser suficientemente completa e heterogénea para que o visitante consiga ter uma boa panorâmica de um universo que as novas gerações certamente desconhecem. Osul, Metosul, Hércules, Armindo Moreira Lopes, José Augusto Júnior, Fabrinca ou PEPE são só algumas das marcas que, entre os anos 1940 e 1970, fizeram vibrar muitas crianças portuguesas.

Merece uma visita.

Horários:
Terça a Sexta-feira:
09:30h – 13:00h
14:00h – 17:30h
Sábado e Domingo:
14:30h – 17:30h

Contactos:
Praça 5 de Outubro
Santa Maria de Avioso, 4475 – 601 Maia
Tel: 229871144

Mechanix Illustrated - Abril 1947


Em 1947, nos Estados Unidos, um dos "educational value" era aprender a betonar. O que ficamos sem saber é se era para educar um arquitecto ou um capataz . Estou mesmo a imaginar os papéis da brincadeira: o pequenote no meio, de camisa, era o trolha, à sua direita, de fato, o engenheiro fiscal, à sua esquerda, com gravata vermelha, o arquitecto e, atrás de todos, também de fato, o empreiteiro...  de qualquer forma, delicioso. 
fonte: http://blog.modernmechanix.com/

A casa de bonecas de Rietveld

A personagem principal desta história é Gerrit Thomas Rietveld (1888-1964). Para os arquitectos não necessita de apresentações. Para os não arquitectos deixo a sua apresentação a uma rápida pesquisa com Google: entretenham-se com, pelo menos, quatro pesquisas: Gerrit Thomas Rietveld, Neoplasticismo, Theo Van Doesburg e Piet Mondrian. Creio que isto chegue para arrumar algum conhecimento e poder continuar a leitura deste texto.
Gerrit Thomas Rietveld, holandês, ou neerlandês, como se deveria dizer mais correctamente, além de ter sido um arquitecto extremamente importante para o século XX, sobretudo com as suas primeiras obras como a casa Schröder em Utrecht, chegou a desenhar várias peças de mobiliário (a famosa cadeira Red and Blue) e alguns brinquedos.

Vamos justamente começar por alguns dos brinquedos que, além de serem projectos de juventude, são claramente ligados ao movimento artístico De Stijl: o trenó, a charrete e o carrinho de mão.
O trenó já não existe e tão-pouco existem imagens. Em Março de 1921 foi apresentado numa exposição de artesanato em Zwolle, uma pequena cidade a este de Amesterdão. Acerca dele não se conhece nada senão uma crítica no jornal ilustrado Elseviers Geïllustreerd Maadschrift que dizia: “Julgo mais interessante como criação muito moderna o trenó de Rietveld, fruto das concepções do movimento De Stijl”. Desta descrição compreende-se que o trenó era composto segundo a linguagem neoplástica que Rietveld utilizou no seu mobiliário e noutros brinquedos. Rectângulos e quadrados pintados de vermelho, azul ou preto e com as faces serradas pintadas de branco. As peças de madeira, de geometrias extremamente simples, são todas unidas através de assemblagens com cavilhas para aumentar o sentido de artificialidade e de estrutura intelectual de cada artefacto.

O mesmo sistema construtivo foi adoptado para a charrette. Esta peça, datada de Maio de 1923, é citada numa carta que Walter Gropius (1883-1969) escreve a J.J.P. Oud (1890-1963) dizendo que apesar de ter interesse nos brinquedos de Rietveld, não poder apresentá-los na exposição (provavelmente uma exposição da Bauhaus em Weimar) porque dos autores que não pertencem à Bauhaus só são expostas obras de Arquitectura. Da charrette existiram vários exemplares, alguns com capota de tecido e outros com barras de secção redonda. O Victoria & Albert Museum de Londres possui uma peça original que foi cedida, em 1975, pelo pintor Bernard Gay (1921-2010).

A terceira peça é o carrinho de mão. Em 1923 Rietveld envia uma carta ao amigo e colega J.J.P. Oud onde aparece o desenho do carrinho de mão. O carrinho, que será construído para o filho de Oud, então com 4 anos de idade, também seguia a linguagem neoplástica e era composto por formas geométricas elementares assembladas sem encaixes. Um exemplar do carrinho de mão foi vendido, em Dezembro de 2004, pela casa leiloeira Sotheby’s de Nova Iorque e adquirida pelo Museu de Brooklyn (onde se encontra agora) por um valor que deve rondar, pelo menos, os 10.000 dólares. 

Ora a bem dizer estes três brinquedos davam material para continuar a discursar sobre Rietveld, o neoplasticismo, o De Stijl, etc... Mas acontece que, em boa verdade, apesar de não poder deixar de falar neles, eu queria escrever sobre uma coisa que Rietveld fez no princípio dos anos 50 e que despoletou uma pequena investigação que se concluiu, justamente, alguns dias atrás. Deixem-me contar a história e depois contarei como lá cheguei.

Rietveld tinha um amigo chamado Nico Jesse (1911-1976). Nico era médico, formou-se em 1937 e passou a Segunda Guerra Mundial como médico de família, mas do que gostava realmente era de fotografia. Gostava tanto que em 1941 teve a sua primeira exposição em Utrecht (que foi inaugurada pelo amigo Rietveld) e, em 1956, decidiu abandonar a medicina para se dedicar integralmente a esta arte. Valeu a pena porque se tornou num excelente fotógrafo tanto de paisagem e, sobretudo, de retratos. De Jesse ficou famoso o livro sobre as mulheres de Paris.
Em 1951, Nico Jesse morava com a mulher em Tienhoven, uma pequena cidade a sul de Utrecht. O casal tinha 5 filhos, 4 meninas e um menino e Nico tinha regressado da guerra e ainda exercia a profissão. A retoma económica do pós-guerra prometia alguma melhoria para esta família. Assim resolveram pedir ao amigo Rietveld um projecto para renovar a casa e desenhar alguns móveis novos. Rietveld aceitou e desenhou várias peças de mobiliário; entre estas uma notável versão da cadeira ZigZag para crianças (1944), umas mesinhas redondas (1941), umas cadeiras de madeira pintada (1942) e uma cama desmontável para crianças (1950).
Não sabemos se foi um pedido de Nico Jesse ou uma iniciativa de Rietveld, mas a verdade é que, em 1952, Koos van Vliet, um carpinteiro de Ameide, uma terra próxima de Tienhoven, construiu uma casa de bonecas seguindo um projecto do próprio Rietveld. Esta casa, completa com móveis, pátio e jardim, foi dada aos filhos como prenda de Natal no mesmo ano.
Não é de estranhar o pedido uma vez que Rietveld tinha a característica de fazer maquetas particularmente realistas dos seus projectos. Qualquer pessoa que frequentasse o seu atelier ficaria entusiasmada com a perfeição destes pequenos modelos onde eram reproduzidas as texturas e as cores das paredes, as caixilharias e, em certos casos, parte da envolvente e alguma peça de mobiliário. Rietveld tinha uma grande habilidade manual e não podemos esquecer que era filho de um carpinteiro com o qual chegou a trabalhar na juventude.

O projecto que Rietveld entrega a Koos van Vliet para construir a casa de bonecas é claramente uma versão alterada de um projecto que o arquitecto tinha feito, em 1947, para um novo bairro em Ijssestein. Este empreendimento, que nunca chegou a ser construído, contava com cerca de cem casas claramente inspirado num bairro operário, sempre projectado por Rietveld em 1941, na cidade de Breda. Apesar de existirem diferenças no que respeita às dimensões das casas, permitindo consideráveis diferenças tipológicas, estes dois projectos partilham um núcleo central com uma escada hexagonal, um sistema de meios pisos e o facto de serem habitações em banda com duas frentes livres.
Para a casa de bonecas Rietvel conserva o princípio geral de implantação com duas frentes livres, duas empenas e o sistema de meios pisos mas altera o sistema das escadas passando-as do centro da casa para junto de uma das empenas. Desta forma retirando uma parede lateral é possível ter acesso aos principias compartimentos da casa e às escadas que ligam o r/c ao restantes pisos. Além disso a estrutura de madeira permite a remoção do telhado para ter um livre acesso ao quarto e a casa de banho do primeiro andar, que se encontram mais afastadas da parede móvel.
Estes detalhes denunciam a sensibilidade de Rietveld para as diferenças que devem existir entre uma casa de bonecas e uma maqueta de arquitectura. A recolocação das escadas numa zona mais periférica, as partes amovíveis e o facto de existir um r/c de planta livre, são todos factores que permitem às crianças ter acesso a toda a casa, coisa que nem sempre pode acontecer em modelos reduzidos de edifícios reais. Além disso, a centralidade do sistema escada/salamandra/chaminé refere-se não à geometria do edifício mas sim à sua utilização por parte de quem brinca uma vez que é colocado justamente no meio da parede removível deixando todos os serviços do lado oposto. Por outras palavras, todos os sistemas tipológicos e tecnológicos são adaptados para serem coerentes com uma utilização da casa enquanto objecto para brincar e não, como seria de esperar numa mera redução, enquanto edifício habitável.

A casa possui um elevado nível de realismo: as janelas possuem caixilhos pintados a imitar ferro e vidros, alguns dos quais foscos por causa da privacidade; os pavimentos são, onde necessário, revestidos em tecido a imitar alcatifa e, onde não necessário, pintados; os equipamentos sanitários são completos com torneiras, tubos e toalheiros; há cortinas com os respectivos varões e todas as portas têm o próprio puxador. Não faltam a já referida chaminé da salamandra, que aquece também o quarto do primeiro andar, e o cilindro para a água quente na casa de banho do quarto de casal. Todos os compartimentos são iluminados através de candeeiros eléctricos, de tecto, no r/c, e de mesa nos quartos. Segundo o que consta, estes candeeiros, quando ligados, aqueciam de tal maneira que, ao brincarem com a casa, as filhas do doutor Jesse estavam constantemente a queimar os dedinhos. Sem considerar que todo o sistema eléctrico estava ligado directamente à rede doméstica, sem transformador, representando assim uma verdadeira armadilha para as crianças que podiam ficar, de um momento para outro, electrocutadas. Nico Jesse era médico, em casa de ferreiro...

Toda a casa estava também equipada com móveis desenhados por Rietveld. Entre estes são notáveis as miniaturas das cadeiras zigzag (que estava no mercado desde 1934), a mesa e os cadeirões iguais aos que Rietveld tinha desenhado anteriormente para a casa da família Jesse. De forma geral, todos os móveis são miniaturas de móveis desenhados por Rietveld sendo que, na monografia dedicada a este arquitecto (Gerrit Th.Rietveld 1888-1964, L’oevuvre complet), pode-se ler, em relação à mesa redonda publicada a p. 206: “a casa de bonecas da família Jesse contém uma miniatura deste móvel”.

Um pormenor que, ao ser divertido, não deixa de ser curioso: dos cinco filhos do doutor Jesse quem ficou com a casa das bonecas foi o único rapaz, Rutger e que o mesmo se formou mais tarde em Arquitectura.

Quanto à casa das bonecas, foi leiloada pela primeira vez na leiloeira Christie’s de Amesterdão e comprada por um particular norte-americano. Em 2004, foi leiloada outra vez, agora em Nova Iorque, pela leiloeira Sotheby’s com um valor de referência entre os 15.000 e os 20.000 dólares. Actualmente encontra-se no Brooklyn Museum de Nova Iorque.

Uma coisa interessante é que foi o filho de Nico Jesse, Rutger, quem fotografou exaustivamente a casa de bonecas antes de ter sido leiloada a primeira vez, em 1988, em Amesterdão. E é justamente graça a este registo fotográfico que esta peça é hoje duplamente conhecida: como objecto produzido por Rietveld e como sujeito fotografado por Jesse. As fotografias são, além disso, extremamente cuidadosas ao tentar reproduzir o modelo como se fosse em escala real através de uma atenta escolha de ângulos de vista e de objectivas.

Agora que contei a história da casa de bonecas de Rietveld, gostaria explicar brevemente como consegui encontrar estas informações. Vários leitores me perguntaram como encontro o material dos textos de archi-toys e esta história vem mesmo a calhar.

A Internet é a base de toda e qualquer investigação que queiramos ou possamos fazer hoje em dia. Apesar de não ser a única e mais fiável fonte de informação, não há dúvidas que é um meio incontornável. É aí que as coisas começam e é cada vez mais aí onde acabam (archi-toys é mais um exemplo disso).
Ora enquanto “passeava” na rede, encontrei uma fotografia de uma casa de bonecas com a legenda a dizer: “Gerrit Rietveld dollhouse” (não me perguntem como a encontrei, porque além de não saber, não penso que seja minimamente importante). Abro o Google e começo a pesquisa. Entre várias coisas encontro um blog onde uma senhora comenta que já escreveu um artigo sobre esta casa de bonecas e que, além disso, conhece um livro onde existem algumas fotografias. No mesmo dia escrevo à senhora (a única coisa que sabia na altura era que tinha uma conta mail e que se chamava Karin Wester), digo quem sou, o que faço e peço ajuda para escrever uma peça sobre o assunto. Segue-se uma troca de mails em que Karin Wester demonstra uma grande simpatia e generosidade: não só me envia logo o seu artigo via mail como me coloca em contacto com a instituição que publicou um livro sobre o médico e fotógrafo Nico Jesse, onde se encontram as fotografias da casa de bonecas e, além disso, envia-me mais artigos dela, sempre sobre outras casas de bonecas, por correio normal. Pela documentação que chega, infelizmente toda em holandês, chego a saber que Karin Wester é uma conservadora no Museu de Westfries em Hoorn, além de ter escrito um livro sobre bonecas e ter um interessante site sobre casas de bonecas holandesas.
Claramente queria o livro. Escrevo para Gert Groenendijk, do Historische Vereniging Ameide em Tienhoven, que é a instituição que publicou o livro de Jesse e que já tinha sido alertada do meu interessa através de um mail de Karin Wester. Uma troca de mails um pouco surrealista entre um italiano que fala português e escreve mal inglês e um holandês que responde num português traduzido com o Google do holandês consegue, milagrosamente, fechar um negócio de 9,24 euros. Além disso, Gert Groenendijk, que se revelou também muito simpático e paciente, fez questão de me dizer que gostou de Lisboa em 98 quando visitou a Expo e de me enviar o link do site do filho Joost, que é fotografo, e que esteve no Porto em 2007 onde tirou umas magnificas fotografias. O mundo é mesmo pequeno.

Ao material que fui recebendo juntei alguma pesquisa na biblioteca da FAUP e mais alguma informação sobre os outros brinquedos desenhados por Rietveld acerca dos quais falei no princípio do artigo. Depois, comecei a escrever...

Construire, une passion - Les jeux de construction de 1850 à nos jours

Apesar de ter sido editado em 2002, este livro é uma compra relativamente recente; encontrei-o numa livraria do Porto numa daquelas tardes de Sábado em que se passeia pela baixa sem grandes programas ou objectivos. Pouco mais de 32 euros para um livro que, tenho a certeza absoluta, uma vez esgotado nunca mais será reeditado.

O livro é relativamente pequeno (93 páginas) mas de boa qualidade: capa dura, bom papel, boas fotografias e bom arranjo gráfico. Os autores também são de qualidade: Flavio Santi é historiador e foi conservador do Museu Suíço do Jogo (em La Tour-de-Peilz, uma pequena cidade na margem suíça do lago de Genebra, a poucos quilómetros a Este de Lausana), além de ser autor de vários textos sobre brinquedos; Antoine Wasserfallen é arquitecto e professor na Escola Politécnica de Lausana, autor particularmente atento à história da técnica e à sua influência na Arquitectura.
A primeira parte do livro faz uma abordagem teórica do tema dos brinquedos de construção. Flavio Santi, em poucas páginas, explica a abrangência do tema e as possíveis ligações históricas e culturais que podem surgir logo numa primeira aproximação.
Uma segunda parte aprofunda alguns aspectos históricos dos jogos de construção. Locke, Rousseau, Pestalozzi e Frobel são alguns dos nomes que são frequentemente citados nestes textos com o intuito de explicar ao leitor a importância e a abrangência filosófica e pedagógica do fenómeno.
O resto do livro é uma recolha, bem organizada e articulada, dos mais paradigmáticos exemplos de jogos de construções. Desde os Meccano, passando pelos Anker, Lego, Matador ou Fichertechnik, são muitos os sistemas apresentados com excelentes imagens e pequenos mas eficazes textos. Sem excessivos aprofundamentos, o leitor consegue ter uma panorâmica suficientemente completa e ordenada por materiais.
A parte final é um longo texto de Antoine Wasserfallen em que o autor organiza uma narrativa bastante complexa, onde não faltam numerosas referências históricas em torno da formação do Arquitecto e do Engenheiro e da sua relação com os brinquedos de construção.
O livro consegue, de facto, o objectivo proposto pelos autores: os jogos de construção são algo que tanto pertencem à história individual de cada um de nós como a uma história colectiva de desenvolvimento tecnológico e progresso social. Duzentos anos de história de evolução do universo dos adultos e a sua projecção no mundo das crianças. Um excelente exemplo de capacidade de organização de um território em redor de um objecto aparentemente simples e banal como são os brinquedos. Em poucas páginas conseguimos conhecer e fotografar mentalmente um universo que vai desde a pedagogia dos princípios do Século XIX até a tecnologia do Século XXI passando pela estética do século XX.

Aconselho a compra a quem encontrar um exemplar.

Referência:
Flavio Santi, Antoine Wasserfallen. 2002. Construire, une passion - Les jeux de construction de 1850 à nos jours.  Genève: Quiquandquoi. ISBN: 2-940317-05-4