O brinquedo futurista

Há quem diga que o mundo mudou muito. Há quem diga que o mundo foi sempre o mesmo. Eu digo que o mundo foi sempre muito diferente e que é impossível reconhecer, por cada época, um único pensamento colectivo ou dominante. Depende tudo da realidade para onde olhamos: por vezes existem verdades muito próximas no tempo e no espaço e, mesmo assim, profundamente diferentes.

Em outros artigos tive a oportunidade de falar de brinquedos desenvolvidos ao longo das primeiras décadas do século XX. Foram tempos de grande fervor intelectual em que alguns sectores da cultura ocidental sofreram grandiosas transformações. Pensamos assim: em 1910 Kandinsky tinha 44 anos, Picasso, Léger, Kupka e Balla, 39; Mondrian e Boccioni, 38; Duchamp 33; Itten e Malevich 32; Klee 31 e Rodchenko 29. O “fontanário” de Duchamp foi exposto, pela primeira vez, em 1916. A escola Bauhaus abriu em 1919 e, em 1928, foi organizado o primeiro CIAM (Congrès Internationaux d'Architecture Moderne). Pensando no que acontecia em finais do século XIX, podemos imaginar o fervor cultural que invadiu certos sectores culturais e o entusiasmo que reinava nos círculos intelectuais europeus.
Mas, como disse no princípio, a história nunca tem um único vector. A Alemanha do princípio do século XX, por exemplo, foi um dos berços das mais agudas expressões da modernidade e, ao mesmo tempo, das mais assustadoras ideologias reaccionárias. Além disso, por vezes, ideologias extraordinariamente diferentes e distantes partilham manifestações culturais comuns mas cujo verdadeiro significado muda quando devidamente contextualizado.

Neste cenário, um dos movimentos ideologicamente mais complexos foi certamente o dos Futuristas. Esta corrente, que teve início com artistas italianos, foi fundada com um documento, em França no Figaro, e que se alastrou a outros países entre os quais a Rússia. Chegou a produzir obras em praticamente todos os campos artísticos. Algumas delas verdadeiramente notáveis. Uma corrente revolucionária que exaltava a violência, a guerra e a superioridade do Homem através do domínio da tecnologia e do progresso científico. A cidade dos futuristas era um organismo sempre em obras, em perene transformação, com enormes vias de comunicação percorridas a grande velocidade por veículos extraordinariamente sofisticados. Alias, a velocidade, a potência e o movimento eram alguns dos conceitos chave presentes no Manifesto Futurista de 1909 onde um dos autores, o pintor Marinetti, escrevia: “Nós queremos cantar o amor pelo perigo, o hábito a energia e ao atrevimento. A coragem, a audácia, a rebelião, serão elementos essenciais da nossa poesia! (...) Não existe mais beleza se não na luta. Nenhuma ópera que não tenha um carácter agressivo pode ser uma obra de arte”.

Para os arquitectos ficou a figura mítica de António Sant’Elia, arquitecto visionário que morreu pela mão daquilo que o amigo e companheiro ideológico Marinetti defendia ser o grande instrumento de higiene do mundo: a guerra. O seu entusiasmo levou-o, em 1915, a listar-se no exército italiano; o mesmo entusiasmo que acabou quando, no dia 10 de Outubro de 1916, com apenas 28 anos de idade, Sant’Elia foi atingido por uma bala na testa durante um assalto à trincheira inimiga.


Mas o que me levou a falar nos futuristas é um documento que encontrei recentemente: o manifesto com o título Ricostruzione futurista dell'universo (Reconstrução futurista do universo). Datado de 11 de Março de 1915 foi assinado por “Giacomo Balla, Fortunato Depero, artistas futuristas” e defendia uma refundação total do universo para torná-lo mais alegre.
A coisa curiosa é que um documento tão ideologicamente e politicamente poderosos tem uma extensa parte que fala de brinquedos. Em 1915 artistas comprometidos com uma ideologia revolucionária com o projecto de mudar o universo exprimem-se, num documento oficial, sobre como deveriam ser os brinquedos e as brincadeiras futuristas.

Tanto Giacomo Balla como Fortunato Depero já tinham desenhado brinquedos. O primeiro era pintor, escultor e cenógrafo, pontilhista e, claro, futurista, procurava interpretar o tempo e a mudança nas artes plásticas através da representação dos movimentos no espaço. O segundo era pintor escultor e publicitário, ficou na história pela sua obra de grande criatividade e que, ainda hoje, simboliza graficamente a ideia de vanguarda. Ambos, em ocasiões diferentes, tinham tido oportunidade de aplicar as técnicas artísticas ao desenho de bonecos extremamente modernos. Curioso e, ao mesmo tempo, extremamente interessante. Vamos ver:














O brinquedo futurista
Nas brincadeiras e nos brinquedos, assim como em todas as manifestações tradicionalistas, não existe outra coisa se não uma grotesca imitação, timidez, (comboínhos, carrinhos, bonecos imóveis, caricaturas idiotas de objectos domésticos), anti-desportivos ou monótonos, somente úteis para tornar estúpida e triste a criança.
Através de modelos complexos nós iremos construir brinquedos que educarão a criança:
  1. a rir abertamente (pelo efeito de truques exageradamente divertidos);
  2. a máxima elasticidade (sem recorrer ao lançamento de projécteis, chicotadas, picadelas improvisas, ect.);
  3. ao lançamento imaginativo (através de brinquedos fantásticos observados através de lentes; caixinhas para serem abertas à noite, das quais irão rebentar maravilhas pirotécnicas; engenhos em transformação, etc.);
  4. a estender infinitamente e a tornar mais ágil a sensibilidade (no domínio infinito dos sons, cheiros, cores, mais intensos, mais agudos, mais excitantes);
  5. a coragem física, a luta e a GUERRA (através de brinquedos enormes que funcionarão ao ar livre, perigosos, agressivos).
O brinquedo futurista será extremamente útil também para o adulto, dado que este ficará jovem, ágil, alegre, desinibido, pronto para tudo, incansável, instintivo e intuitivo.

Assim pensavam eles, os futuristas, em 1915.

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