A personagem principal desta história é Gerrit Thomas Rietveld (1888-1964). Para os arquitectos não necessita de apresentações. Para os não arquitectos deixo a sua apresentação a uma rápida pesquisa com Google: entretenham-se com, pelo menos, quatro pesquisas: Gerrit Thomas Rietveld, Neoplasticismo, Theo Van Doesburg e Piet Mondrian. Creio que isto chegue para arrumar algum conhecimento e poder continuar a leitura deste texto.
Gerrit Thomas Rietveld, holandês, ou neerlandês, como se deveria dizer mais correctamente, além de ter sido um arquitecto extremamente importante para o século XX, sobretudo com as suas primeiras obras como a casa
Schröder em Utrecht, chegou a desenhar várias peças de mobiliário (a famosa cadeira
Red and Blue) e alguns brinquedos.
Vamos justamente começar por alguns dos brinquedos que, além de serem projectos de juventude, são claramente ligados ao movimento artístico
De Stijl: o trenó, a charrete e o carrinho de mão.
O trenó já não existe e tão-pouco existem imagens. Em Março de 1921 foi apresentado numa exposição de artesanato em Zwolle, uma pequena cidade a este de Amesterdão. Acerca dele não se conhece nada senão uma crítica no jornal ilustrado Elseviers Geïllustreerd Maadschrift que dizia: “
Julgo mais interessante como criação muito moderna o trenó de Rietveld, fruto das concepções do movimento De Stijl”. Desta descrição compreende-se que o trenó era composto segundo a linguagem neoplástica que Rietveld utilizou no seu mobiliário e noutros brinquedos. Rectângulos e quadrados pintados de vermelho, azul ou preto e com as faces serradas pintadas de branco. As peças de madeira, de geometrias extremamente simples, são todas unidas através de assemblagens com cavilhas para aumentar o sentido de artificialidade e de estrutura intelectual de cada artefacto.
O mesmo sistema construtivo foi adoptado para a charrette. Esta peça, datada de Maio de 1923, é citada numa carta que Walter Gropius (1883-1969) escreve a J.J.P. Oud (1890-1963) dizendo que apesar de ter interesse nos brinquedos de Rietveld, não poder apresentá-los na exposição (provavelmente uma exposição da Bauhaus em Weimar) porque dos autores que não pertencem à Bauhaus só são expostas obras de Arquitectura. Da charrette existiram vários exemplares, alguns com capota de tecido e outros com barras de secção redonda. O Victoria & Albert Museum de Londres possui uma peça original que foi cedida, em 1975, pelo pintor Bernard Gay (1921-2010).
A terceira peça é o carrinho de mão. Em 1923 Rietveld envia uma carta ao amigo e colega J.J.P. Oud onde aparece o desenho do carrinho de mão. O carrinho, que será construído para o filho de Oud, então com 4 anos de idade, também seguia a linguagem neoplástica e era composto por formas geométricas elementares assembladas sem encaixes. Um exemplar do carrinho de mão foi vendido, em Dezembro de 2004, pela casa leiloeira Sotheby’s de Nova Iorque e adquirida pelo Museu de Brooklyn (onde se encontra agora) por um valor que deve rondar, pelo menos, os 10.000 dólares.
Ora a bem dizer estes três brinquedos davam material para continuar a discursar sobre Rietveld, o neoplasticismo, o De Stijl, etc... Mas acontece que, em boa verdade, apesar de não poder deixar de falar neles, eu queria escrever sobre uma coisa que Rietveld fez no princípio dos anos 50 e que despoletou uma pequena investigação que se concluiu, justamente, alguns dias atrás. Deixem-me contar a história e depois contarei como lá cheguei.
Rietveld tinha um amigo chamado Nico Jesse (1911-1976). Nico era médico, formou-se em 1937 e passou a Segunda Guerra Mundial como médico de família, mas do que gostava realmente era de fotografia. Gostava tanto que em 1941 teve a sua primeira exposição em Utrecht (que foi inaugurada pelo amigo Rietveld) e, em 1956, decidiu abandonar a medicina para se dedicar integralmente a esta arte. Valeu a pena porque se tornou num excelente fotógrafo tanto de paisagem e, sobretudo, de retratos. De Jesse ficou famoso o livro sobre as mulheres de Paris.
Em 1951, Nico Jesse morava com a mulher em Tienhoven, uma pequena cidade a sul de Utrecht. O casal tinha 5 filhos, 4 meninas e um menino e Nico tinha regressado da guerra e ainda exercia a profissão. A retoma económica do pós-guerra prometia alguma melhoria para esta família. Assim resolveram pedir ao amigo Rietveld um projecto para renovar a casa e desenhar alguns móveis novos. Rietveld aceitou e desenhou várias peças de mobiliário; entre estas uma notável versão da cadeira ZigZag para crianças (1944), umas mesinhas redondas (1941), umas cadeiras de madeira pintada (1942) e uma cama desmontável para crianças (1950).
Não sabemos se foi um pedido de Nico Jesse ou uma iniciativa de Rietveld, mas a verdade é que, em 1952, Koos van Vliet, um carpinteiro de Ameide, uma terra próxima de Tienhoven, construiu uma casa de bonecas seguindo um projecto do próprio Rietveld. Esta casa, completa com móveis, pátio e jardim, foi dada aos filhos como prenda de Natal no mesmo ano.
Não é de estranhar o pedido uma vez que Rietveld tinha a característica de fazer maquetas particularmente realistas dos seus projectos. Qualquer pessoa que frequentasse o seu atelier ficaria entusiasmada com a perfeição destes pequenos modelos onde eram reproduzidas as texturas e as cores das paredes, as caixilharias e, em certos casos, parte da envolvente e alguma peça de mobiliário. Rietveld tinha uma grande habilidade manual e não podemos esquecer que era filho de um carpinteiro com o qual chegou a trabalhar na juventude.
O projecto que Rietveld entrega a Koos van Vliet para construir a casa de bonecas é claramente uma versão alterada de um projecto que o arquitecto tinha feito, em 1947, para um novo bairro em Ijssestein. Este empreendimento, que nunca chegou a ser construído, contava com cerca de cem casas claramente inspirado num bairro operário, sempre projectado por Rietveld em 1941, na cidade de Breda. Apesar de existirem diferenças no que respeita às dimensões das casas, permitindo consideráveis diferenças tipológicas, estes dois projectos partilham um núcleo central com uma escada hexagonal, um sistema de meios pisos e o facto de serem habitações em banda com duas frentes livres.
Para a casa de bonecas Rietvel conserva o princípio geral de implantação com duas frentes livres, duas empenas e o sistema de meios pisos mas altera o sistema das escadas passando-as do centro da casa para junto de uma das empenas. Desta forma retirando uma parede lateral é possível ter acesso aos principias compartimentos da casa e às escadas que ligam o r/c ao restantes pisos. Além disso a estrutura de madeira permite a remoção do telhado para ter um livre acesso ao quarto e a casa de banho do primeiro andar, que se encontram mais afastadas da parede móvel.
Estes detalhes denunciam a sensibilidade de Rietveld para as diferenças que devem existir entre uma casa de bonecas e uma maqueta de arquitectura. A recolocação das escadas numa zona mais periférica, as partes amovíveis e o facto de existir um r/c de planta livre, são todos factores que permitem às crianças ter acesso a toda a casa, coisa que nem sempre pode acontecer em modelos reduzidos de edifícios reais. Além disso, a centralidade do sistema escada/salamandra/chaminé refere-se não à geometria do edifício mas sim à sua utilização por parte de quem brinca uma vez que é colocado justamente no meio da parede removível deixando todos os serviços do lado oposto. Por outras palavras, todos os sistemas tipológicos e tecnológicos são adaptados para serem coerentes com uma utilização da casa enquanto objecto para brincar e não, como seria de esperar numa mera redução, enquanto edifício habitável.
A casa possui um elevado nível de realismo: as janelas possuem caixilhos pintados a imitar ferro e vidros, alguns dos quais foscos por causa da privacidade; os pavimentos são, onde necessário, revestidos em tecido a imitar alcatifa e, onde não necessário, pintados; os equipamentos sanitários são completos com torneiras, tubos e toalheiros; há cortinas com os respectivos varões e todas as portas têm o próprio puxador. Não faltam a já referida chaminé da salamandra, que aquece também o quarto do primeiro andar, e o cilindro para a água quente na casa de banho do quarto de casal. Todos os compartimentos são iluminados através de candeeiros eléctricos, de tecto, no r/c, e de mesa nos quartos. Segundo o que consta, estes candeeiros, quando ligados, aqueciam de tal maneira que, ao brincarem com a casa, as filhas do doutor Jesse estavam constantemente a queimar os dedinhos. Sem considerar que todo o sistema eléctrico estava ligado directamente à rede doméstica, sem transformador, representando assim uma verdadeira armadilha para as crianças que podiam ficar, de um momento para outro, electrocutadas. Nico Jesse era médico, em casa de ferreiro...
Toda a casa estava também equipada com móveis desenhados por Rietveld. Entre estes são notáveis as miniaturas das cadeiras zigzag (que estava no mercado desde 1934), a mesa e os cadeirões iguais aos que Rietveld tinha desenhado anteriormente para a casa da família Jesse. De forma geral, todos os móveis são miniaturas de móveis desenhados por Rietveld sendo que, na monografia dedicada a este arquitecto (
Gerrit Th.Rietveld 1888-1964, L’oevuvre complet), pode-se ler, em relação à mesa redonda publicada a p. 206: “a casa de bonecas da família Jesse contém uma miniatura deste móvel”.
Um pormenor que, ao ser divertido, não deixa de ser curioso: dos cinco filhos do doutor Jesse quem ficou com a casa das bonecas foi o único rapaz, Rutger e que o mesmo se formou mais tarde em Arquitectura.
Quanto à casa das bonecas, foi leiloada pela primeira vez na leiloeira Christie’s de Amesterdão e comprada por um particular norte-americano. Em 2004, foi leiloada outra vez, agora em Nova Iorque, pela leiloeira Sotheby’s com um valor de referência entre os 15.000 e os 20.000 dólares. Actualmente encontra-se no
Brooklyn Museum de Nova Iorque.
Uma coisa interessante é que foi o filho de Nico Jesse, Rutger, quem fotografou exaustivamente a casa de bonecas antes de ter sido leiloada a primeira vez, em 1988, em Amesterdão. E é justamente graça a este registo fotográfico que esta peça é hoje duplamente conhecida: como objecto produzido por Rietveld e como sujeito fotografado por Jesse. As fotografias são, além disso, extremamente cuidadosas ao tentar reproduzir o modelo como se fosse em escala real através de uma atenta escolha de ângulos de vista e de objectivas.
Agora que contei a história da casa de bonecas de Rietveld, gostaria explicar brevemente como consegui encontrar estas informações. Vários leitores me perguntaram como encontro o material dos textos de archi-toys e esta história vem mesmo a calhar.
A Internet é a base de toda e qualquer investigação que queiramos ou possamos fazer hoje em dia. Apesar de não ser a única e mais fiável fonte de informação, não há dúvidas que é um meio incontornável. É aí que as coisas começam e é cada vez mais aí onde acabam (archi-toys é mais um exemplo disso).
Ora enquanto “passeava” na rede, encontrei uma fotografia de uma casa de bonecas com a legenda a dizer: “
Gerrit Rietveld dollhouse” (não me perguntem como a encontrei, porque além de não saber, não penso que seja minimamente importante). Abro o Google e começo a pesquisa. Entre várias coisas encontro um blog onde uma senhora comenta que já escreveu um artigo sobre esta casa de bonecas e que, além disso, conhece um livro onde existem algumas fotografias. No mesmo dia escrevo à senhora (a única coisa que sabia na altura era que tinha uma conta mail e que se chamava Karin Wester), digo quem sou, o que faço e peço ajuda para escrever uma peça sobre o assunto. Segue-se uma troca de mails em que Karin Wester demonstra uma grande simpatia e generosidade: não só me envia logo o seu artigo via mail como me coloca em contacto com a instituição que publicou um livro sobre o médico e fotógrafo Nico Jesse, onde se encontram as fotografias da casa de bonecas e, além disso, envia-me mais artigos dela, sempre sobre outras casas de bonecas, por correio normal. Pela documentação que chega, infelizmente toda em holandês, chego a saber que Karin Wester é uma conservadora no Museu de Westfries em Hoorn, além de ter escrito um livro sobre bonecas e ter um interessante
site sobre casas de bonecas holandesas.
Claramente queria o livro. Escrevo para Gert Groenendijk, do
Historische Vereniging Ameide em Tienhoven, que é a instituição que publicou o livro de Jesse e que já tinha sido alertada do meu interessa através de um mail de Karin Wester. Uma troca de mails um pouco surrealista entre um italiano que fala português e escreve mal inglês e um holandês que responde num português traduzido com o Google do holandês consegue, milagrosamente, fechar um negócio de 9,24 euros. Além disso, Gert Groenendijk, que se revelou também muito simpático e paciente, fez questão de me dizer que gostou de Lisboa em 98 quando visitou a Expo e de me enviar o
link do site do filho Joost, que é fotografo, e que esteve no Porto em 2007 onde tirou umas magnificas fotografias. O mundo é mesmo pequeno.
Ao material que fui recebendo juntei alguma pesquisa na biblioteca da FAUP e mais alguma informação sobre os outros brinquedos desenhados por Rietveld acerca dos quais falei no princípio do artigo. Depois, comecei a escrever...