Mais um caso de serendipity - a descoberta de Ladislav Sutnar

Outro dia, num post sobre a visita que fiz ao museu do brinquedo em Londres, abordei o problema da catalogação museológica dos brinquedos. O mesmo problema manifestou-se, sob forma diferente, diria contrária mas igualmente estimulante, quando estive a visitar o site do MoMa (Museum of Modern Art) para ver se encontrava na colecção permanente, que está muito bem catalogada on-line, um objecto desenhado por Gerrit Rietveld. Digamos que estive, claramente, diante de uma situação que os americanos definiriam como caracterizada por serendipity. Segundo Julius H. Comroe (1911-1984), um biólogo norte-americano do princípio do século, "Serendipity is looking in a haystack for a needle and discovering a farmer's daughter"; ou seja procurar alguma coisa e encontrar outra completamente diferente (e, por vezes, bem mais interessante...). Assim, na categoria Architecture and Design da colecção on-line não encontrei o que procurava mas, em contrapartida, encontrei outra coisa acerca da qual irei falar neste post.

Com o número de arquivo 173.2006.1-29 e a descrição de Prototype for Build the Town Building Blocks está registado o protótipo de um brinquedo muito interessante. Pelas fotografias publicadas pode-se ver que é um sistema de construções constituído por blocos de madeira pintada com o qual é possível construir vários tipos de edifícios. O mais interessante é o facto de que só existem três tipos de volume: um paralelepípedo de 4.4x7x7 cm (com uma versão mais pequena de 5.1x7.6x7.6 cm), um prisma com 6.4x7.3x3.8 cm e um tronco de cone com 18.7x5.1 cm (com uma versão mais pequena de 17.1x5.1 cm). O conjunto original tinha 30 peças. O resto é feito através da pintura das diferentes faces dos sólidos. Diferentes desenhos podem-se transformar-se em janelas corridas, janelas ao alto, clarabóias ou paredes de vidro; conforme a orientação dos blocos e da composição é possível construir edifícios de habitação, fábricas ou escritórios. Tudo unicamente com três volumes básicos e com um notável gosto gráfico e cromático. Simplesmente maravilhoso.
Continuando a ler a descrição do MoMa podemos ver que o autor é Ladislav Sutnar, americano, nascido na Boémia, agora Republica Checa, em 1897, morto em 1976. Suficientemente confuso para ser interessante; comecei a investigar.

Ladislav Sutnar (o senhor com cara simpática na fotografia) nasce no dia 9 de Novembro de 1897 em Pilsen, na República Checa, filho de Václav e de Rosaline Sutnar. Em Setembro de 1915 inscreve-se na Escola de Artes Aplicadas de Praga; na mesma cidade estuda Arquitectura e Matemática no Instituto Checo de Tecnologia. No dia 30 de Junho de 1923 forma-se na Escola das Artes Aplicadas. No mesmo ano, em Julho, casa com Frantiska Kubsova, começa a dar aulas de desenho e continua a já promissora carreira de designer gráfico, de marionetas e de brinquedos.


Sutnar, que ficou conhecido como um dos criadores do design de informação, interessou-se desde muito cedo por marionetas, seguindo a tradição checa. Tanto era o seu interesse que, no dia 7 de Junho de 1921, apresentou uma comunicação sobre o conceito moderno de marionetas, costumes e direcção de cena no primeiro Congresso de Marionetas Checo em Praga. No mesmo ano projecta e produz brinquedos de madeira compostos por blocos de geometrias simples chamados Modular City. Estes são exibidos na 1ª exposição da Associação de Artes e Ofícios Checa. Os brinquedos serão sucessivamente produzidos pela associação Artel, uma associação que juntava arquitectos, artistas e designers que chegou a produzir, também, brinquedos do designer gráfico Vaclav Spala (1885-1946) e do ilustrador e tipografo Vratislav Hugo Brunner (1886-1928).

Sempre em 1921 passa o exame que lhe permite, em Setembro, começar a dar aulas na faculdade; e torna-se director do novo “teatro de marionetas do dragão” (Scéna Drak) localizado num bairro operário em Praga. Todo o teatro é um projecto de Sutnar em colaboração com Augustin Tschinkel (1905-1983) outro grande designer gráfico construtivista checo com obra presente no MoMa. Em 1926, na Opera Nacional de Praga estreia uma peça de teatro de Luigi Pirandello (Luís IV) com cenário, costumes, máscaras e cartazes desenhados por Sutnar.

Em Dezembro de 1924 Sutnar ganha um prémio com os seus brinquedos de cidade modular, expostos no Museu das Artes aplicadas de Praga e, em 1925, expõe-nos também na Exposição Internacional de Artes Decorativas em Paris, onde ganha uma medalha de prata.

Na década de 1930 Sutnar atingirá um grande sucesso profissional e reconhecimento cultural, em Praga. Em 1933 é o novo director da Escola Estatal de Gráfica onde moderniza o currículo, abre um curso de fotografia publicitária e convida novos docentes para dar aulas. Os contactos com a Bauhaus em Weimar são frequentes e, já desde 1920, Sutnar mantém contacto com muitos artistas que serão mais tarde exilados para os EUA como Walter Gropius, Herbert Bayer, Marcel Breuer, Lázsló Moholy-Nagy, e Joesph Albers. Apesar de ser reconhecido no seu pais, a sua visibilidade internacional e histórica ficou sempre sombreada pela importância de figuras como Moholy-Nagy (Bauhaus), El Lissitzky (Bauhaus) ou, mais tarde, Saul Bass.

Em 1932 Sutnar muda-se para uma casa projectada pelo arquitecto Oldřich Starý (1884-1971) no Baba, um bairro residencial promovido pelo Werkbund checo com o mesmo princípio com o qual outros bairros foram promovidos, um pouco por toda e Europa nestes anos entre os bairros mais famosos ficará, sem dúvida, o de Estugarda Weissenhof-Siedlung, de 1927, contando com obras de Le Corbusier, Mies van der Rohe, Walter Gropius, entre outros). Ainda neste período participa em várias feiras com projectos gráficos, e de objectos de design, chegando a receber vários prémios e reconhecimentos internacionais entre os quais uma medalha na Exposição Internacional de Paris e outra na Triennale de Milão. Em Junho de 1938 é responsável pelo pavilhão Checo na feira internacional de 1939, em Nova Iorque. Isto será o encargo que irá mudar a vida de Ladislav Sutnar.

No dia 15 de Março de 1939 as tropas Nazi ocupam a Sudetenland, a Boémia e a Morávia, partes da Checoslováquia que passam a estar sob o domínio alemão.
No dia 14 de Abril do mesmo ano, Sutnar chega a Nova Iorque de barco com o encargo de acabar à pressa o pavilhão com o material que já tinha sido enviado e tê-lo pronto para o dia da abertura da feira. Além disso tinha que garantir o regresso à pátria do material exposto. No dia 30 a feira abre ao público com o pavilhão da Checoslováquia terminado.

Quando, no dia 27 de Outubro de 1940, a feira de Nova Iorque fechou, Sutnar já estava a trabalhar numa firma de gráfica publicitária, a “Composition Room”, e não tinha a mínima intenção de voltar para a Checoslováquia. A desculpa oficial foi a de não reconhecer autoridade aos Nazis. Deixou no seu país uma mulher e dois filhos (que em 1946 irão juntar-se a ele).

No dia 31 de Janeiro de 1941 Sutnar é oficialmente suspenso das funções de director da Escola Estatal de gráfica em Praga e a sua família é deixada sem nenhum apoio económico. Também a produção das suas porcelanas é descontinuada, em jeito de retaliação.

Nos primeiros anos americanos, Sutnar retoma o projecto dos seus brinquedos de madeira Build the Town, mas não encontra ninguém disponível para a produção devido ao clima económico da guerra. Em 1941 torna-se director criativo da Sweet’s Catalog, uma divisão de Nova York da F.W. Dodge Corporation e começa a sua colaboração de vinte anos com Knud Lonberg-Holm um arquitecto de origens dinamarquesas que era director da Sweet’s (conhecido entre os arquitectos pela suas fotografias de arranha-céus de Nova Iorque). Em 1941, expõe na Catherine Kuh Gallery em Chicago junto com outros grandes artistas da altura. Em 1943 publica o livro Controlled Visual Flow, e em 1956 começa a dar aulas na Pratt Institute em Nova Iorque. Entre 1941-1960 Sutnar desenha centenas de catálogos para muitas companhias americanas e, em 1947, abre a sua primeira exposição americana na A-D Gallery em Nova Iorque.

No dia 25 de Fevereiro de 1948, a Checoslováquia integra o bloco soviético que perdurará por 40 anos. Em 31 de Dezembro do mesmo ano, Sutlan recebe a cidadania Americana e, três anos mais tarde, abre o próprio escritório no 307 East 37th Street, NY.

No dia 18 de Novembro de 1976, com 79 anos de idade e após uma riquíssima carreira, Ladislav Sutnar morre no Lenox Hill Hospital.

Em 12 de Outubro de 2006, um protótipo do brinquedo “Build the Town” foi vendido em leilão pela Swann pela quantia de 8.400 dólares. Em 2001 os desenhos e as notas deste projecto tinham sido vendidas por 13.000, também em leilão. Actualmente outros protótipos podem ser vistos no Cooper Hewitt National Design Museum, e no MoMa, em Nova Iorque, e no J. Paul Getty Museum, em Los Angeles.

Sutnar falava mal inglês e conservou, ao longo de toda a vida, uma fortíssima pronúncia checa. Esta é uma das razões pela qual não deixou uma grande produção teórica (além do facto de que, em 1947, o manuscrito de um livro que reunia os seus princípios gráficos ardeu integralmente pouco antes de ser enviado para a editora). Mas é também uma das razões apontadas para se tornar tão bom no que fazia. Ele desenvolveu “terceiras línguas” gráficas com a qual conseguir transmitir conceitos complexos sem que existisse, necessariamente, a partilha da linguagem verbal entre as partes. Desta forma procurar o essencial e representá-lo da forma mais simples e eficaz foi a missão à qual se dedicou tanto no campo da gráfica como no do desenho de marionetas e de brinquedos.
Basta olhar para o conjunto “Build the Town” ou ainda para o cilindro, o camião ou o comboio em madeira para compreender a eficácia do desenho de Sutnar. A grande chaminé, em clara sintonia com a ideologia do poder e da importância da industrialização no início do século XX (da qual Sutnar era um entusiasta), representava, de facto, uma depuração formal extrema. Unicamente três volumes resolvem as geometrias mais significativas de qualquer tipo de edifícios e, com isto, de qualquer cidade. Da mesma forma as janelas desenhadas nos blocos tinham a capacidade, só mediante diferentes configurações geométricas e cromáticas, de serem panos de vidro de uma fábrica, portas de uma casa ou clarabóias numa cobertura plana ou inclinada. Sem falar das construções desenhadas em 1927 em claro estilo Bauhaus ou da série de animais. Estes são todos sobre rodas para se poderem mexer, característica típica do ser vivo, e em cada espécie são enfatizadas as características formais mais marcantes: a juba do leão, o pescoço da girafa ou o chifre do rinoceronte.
Mas o tráfego criativo entre design gráfico e projecto de brinquedos tem, na obra de Sutnar, dois sentidos. O aspecto fortemente lúdico das publicações e de muitos catálogos da fase americana demonstram a capacidade deste autor em transferir conhecimento e inteligência projectual de um campo para outro com claro benefício de ambos. É justamente esta proximidade, quase mistura, que aqui interessa. Conseguir destilar as essências das coisas é uma das capacidades mais importantes quando queremos, como Ladislav Sutnar queria, que os brinquedos sejam algo mais que uma mera ocupação da criança. Quando queremos transmitir uma herança cultural temos antes que a compreender para, depois, a poder organizar e, finalmente, sintetizar através de uma representação simplificada.

Esta é a lição de Ladislav Sutnar que, quase por engano, encontrei nos seus brinquedos expostos no Moma.

Origem das imagens: www.sutnar.cz e www.moma.org

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